Questões que me atormentam...

Monday, November 06, 2006

Maria Clara bateu na minha filha

Contexto

Maio de 2004. Após um capítulo da novela “Celebridades”, da (eca!) Rede Globo, fui cercado pelos comentários de uma cena de espancamento que ocorrera na noite anterior. Na segunda, já no trabalho, o comentário era geral, sempre no senso comum de alma lavada, de “bem feito pra ela”.

Quando abri o site do Estado de São Paulo, vi que a novela atingira seu maior índice de audiência no dia da pancadaria. Bateu-me aquela sensação chata que pelo menos mensalmente me atinge: todo mundo pirou ou eu não sou desse planeta? Resolvi escrever, esperando iniciar uma série de outras crônicas sobre as coisas que me rodeiam.


Sábado passado, numa overdose nacional, se injetou morfina simultaneamente em cerca de 40 milhões de brasileiros inocentes. Alguns nem tanto.

Debaixo do “barato” produzido pela droga, essa multidão sentou-se e assistiu às cenas de barbárie, daquelas que até os mais apelativos dos programas estilo banho-de-sangue costumam pedir a retirada de crianças da sala e, aos adultos que ficam, que trinquem os dentes que vem coisa da pesada. Era a super Maria Clara Diniz, destruindo a cara da rival Laura Sei Lá o Que, em horário nobre, para uma torcida em espírito Coliseu, todos de polegar para baixo, exigindo e comemorando a aniquilação da cristã malvada.

- Você viu a surra de Laura?

-Viu Maria Clara arrepiando ontem?

- Rapaz, a novela foi o bicho! Perdeste!

Seguia a massa morfinada, ainda cheia dos paus, na manhã seguinte.

Eu aprendi ainda na adolescência que não adianta argumentar com bêbado. Ninguém, em sã consciência, gasta energia dando lição de moral no bebum, que no dia seguinte não terá registrado sequer que lhe encontrou, avalie o que você disse. Ignora-se como pode o papelão que ele está fazendo e, na manhã seguinte, da-lhe o puxão de orelha.

Passada a cachaça, ou morfina, prepare a orelha.

Uma família já está doente quando a violência explicita, bárbara, animalesca, diante dos seus olhos a aflige, mas é esquecida em minutos. Se essa família acha a seqüência de espancamento mais uma cena, dentro de um conjunto de outras dispersas, eu diria que o doente está em estado grave, com risco de morte. No extremo, quase impensável, quando a família torce para que a violência ocorra e, comemorando, leva a alma lavada para cama após a seção pancadaria, lamento, a família foi a óbito. Morreu.

Falo “família” porque se me referir a “sociedade” o leitor corre para os dois refúgios clássicos via consciência tranqüila: 1) sociedade é algo grande demais para me sentir responsável por ela; 2) é papo de sociólogo paranóico. Como eu quero atenção e reação, falo “família”, boto logo a mãe no meio. Desde de moleque na rua, essa tática nunca falhou.

Por mais que os instintos nos convidem, não podemos nos deixar levar pela porção animal que carregamos. Como jogar fora 6000 anos de civilização, de acúmulo de conhecimento, de aprimoramento da forma de vida e se comportar como o mero australoptecus? A gente não pode voltar para a selva. É lá onde se resolve as diferenças na pancada.

Quando a televisão conduz a multidão para essa catarse de vingança, está prestando um desserviço incalculável às salas que invade. Além de banalizar a violência, leva ao cúmulo de aprensentá-la como uma forma justificada para se agir junto aos desafetos.

O que dizer à filhinha que partiu para cima da rival da escola, na manhã seguinte?- Mamãe, me expulsarão por quê? Tô de castigo por quê? Eu fiz igual à Maria Clara. Todo mundo adora ela!

Silêncio. Essa é única resposta que lhe resta.

É mentira a idéia que a gente sabe que na televisão é tudo de brincadeirinha e, por isso, ninguém se baseia no que passa lá. Claro que é mentira. Sua filha está com o cabelo igual ao da Darlene, fala igual a Jaqueline (Caracas, é mesmo!.) quer ser Maria Clara quando crescer e namorar com o Fernando. Como negar que a televisão determina a realidade?

Não se pode absorver a televisão, escudado no argumento que ela não inventa a violência, simplesmente reproduz a realidade, num papel legítimo de veículo de comunicação em massa. Outra mentira. Desde quando periferia é habitada só por gente bonita, todo mundo vive feliz, é gordinho e vira até empresário de casa de show (de samba)? Onde fica essa periferia onde basta a menina saçaricar um bocado que vai acabar apresentando programa de televisão? Que país é esse que no meio de 50 pessoas, de lugares diferentes, ambientes diferentes, só se tem 1 ou 2 pretos fora da cozinha? Onde é esse Brasil onde o negro é fotógrafo, bem empregado, todo charmoso, tratado sempre com respeito e vive na piscina? Se isso é a realidade, eu quero me mudar para esse lugar ontem.

Não creio que esse é um país onde as pessoas resolvem suas diferenças aos tapas, em banheiros de festinhas. Mas temo seriamente por ser um país que se diverte vendo a pancadaria e delira com um rosto desfigurado pela violência. Quando isso está plantado impunemente no nosso cotidiano, resta um quadro desolador a se pintar das gerações formadas na banalidade do que é e deveria ser taxado de bárbaro.

Quando Maria Clara lançou seus golpes sobre Laura, atingiu em cheio a cara da minha filha. Impotente, por não ter nascido ainda, ela correu para o pai, que aqui partiu em sua defesa.

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