Filé, brother e cumpade
Contexto
Junho de 2004, depois de me aproximar mais da família de Milena, fiquei cada vez mais deslumbrado com as coisas de fazenda. As pessoas, os hábitos os lugares, tudo me fascina muito. Cada vez sinto mais vontade fazer parte, de ser do ramo. Ora penso que tenho recebido essa paixão por osmose, via Antônio Carlos (o bom , pai de Mi). Ora nem penso, só curto e me deixo mergulhar.
Texto...
Agora depois de adaptado ao grande centro, virado urbanóide, todo esquematizado, antenado, globalizado e todos os “ados” que metade das pessoas que falam não sabe um quinto do que está dizendo, estou sofrendo a revanche. É a rebordosa, a vingança da roça contra os sabidos da capital. Tudo porque apesar do interior, fui criado numa cidade que não é do campo, que está longe daquele “kit” estrada-igreja-prefeitura-delegacia-BancoDoBrasil-Correios. Consequentemente, nunca montei em quadrúpede algum, creio que conheci vaca nos livros da escola antes de uma passar na minha frente, e, apesar da quebradeira da família, meus objetos de desejo eram bicicleta e autorama. Ou seja, do interior mas metido a urbano.
É com esse histórico que começo a me aproximar do mundo rural. Apesar do processo de encantamento e início de uma forte paixão, sigo sem o menor pedigree para esse planeta. Chego da cidade grande, cheio de carro bonito, todo qualquercoisa”ado”, e sou, de novo, motivo de piada.
Não sei montar a cavalo, não tenho força para espremer o peito da vaca, tenho a maior dificuldade para acordar de madrugada, me canso só olhando o volume de trabalho que uma pessoa do campo faz em uma hora, mais uma vez o povo não entende o que eu falo nem fala como eu e toda vez que eu faço uma pergunta (das 8 mil diárias) sobre como as coisas funcionam, a resposta vem com riso ou uma expressão facial que diz “isso é que é ser ignorante!”.
Tenho passado pelo mesmo processo de deslumbre e adaptação que passei cinco ou seis anos atrás, quando cheguei na capital. Descubro setecentas coisas novas por dia e sinto necessidade de desenvolver outras centenas de habilidades para me encaixar no novo cenário.
Cinco anos atrás, recém chegado na capital, ainda chamando os amigos de “filé” (agora são brother), eu saía do trabalho quando caiu uma daquelas trombas d’água que me fez pensar, quase que instintivamente, na plenitude do meu sotaque : “pense num bâin[1] de chuva bom do carai[2]!”. Ainda abestalhado com tudo que acontecia na cidade grande, segui displicente até uma enrascada típica da capital: engarrafamento. Naquele dia eu descobri que chuva não tem nada a ver com bâin e que só louco pode sorrir debaixo de uma. Foram 3 horas de carro parado, desligadinho da Silva, ouvindo notícias de desabamento pela cidade e aquele informativo do trânsito que a certa hora, invertendo a lógica comum do serviço, passou listar os lugares da cidade onde não estava travado.
Alguns dias atrás, saí de cavalo, todo serelepe, na 2.518.321ª lição de equitação que, autodidata no ramo, me submeto. Igualmente displicente, conduzi o animal (é assim que se chama cavalo por lá) até um vilarejo e passei por um local que o cavalo costumava ficar amarrado desde o dia que pode com uma corda no pescoço. Pronto. Para que? O cavalo empacou[3] e minhas habilidades extremamente resumidas de vaqueiro só conseguiram surtir um monte de grito sem sentido (eu já tinha visto vaqueiro gritar aquelas coisas). Puxão de um lado, puxão de outro e nada. Gavião nem aí pra mim. Ali eu fiquei, engarrafado de novo, por um bom tempo.
Além de aprender a me locomover de novo, é preciso reaprender a morar, a conversar, a pensar, a me vestir, a falar, a dirigir, a comer, a beber, a trabalhar, a fazer amizades, a comprar, a jogar futebol. É preciso reaprender a viver.
Foi desafiador e intenso fazer isso uma vez, saindo da mesa de mainha para a praça de alimentação do shopping. Tem sido ainda mais prazeroso e renovador o segundo recomeço. O primeiro significou uma imensa ampliação dos meus contatos com o mundo das coisas. São elas que dominam as pedras e mentes da capital. O segundo tem sido uma viagem à simplicidade, um passeio pela nudez da espécie. Uma instigante jornada pelo mundo que parece ter sido montado sobre um tapete de pureza.
Cumpade, eu recomendo.
[1] bain = banho, em paraibês
[2] tradução impublicável
[3] Fenômeno transcendental, em que o cavalo que até cinco segundos atrás respondia à rédea como a tv ao controle remoto, toma votande própria, não reage a estímulos externos, em um estado que beira o autismo, ignora a presença e todos os estribuchos do cavaleiro.
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