"Quem busca o interior, vai morar no interior. Quem busca o capital, vai morar na capital"
Contexto
No contato com o povo da roça eu vivenciei uma teoria manjada, mas que nunca será compreendida plenamente sem que se conviva com os dois extremos. Cidade grande é o mundo da grana, dos equipamentos, da praticidade, das coisas, do “ter”. Interior é das pessoas, da natureza, dos sentimentos, das relações, do “ser”. Acho que não agüentaria viver em quaisquer dos extremos, mas tenho mais apetite para o lado do interior
Nesse espírito, tenho observado e aprendido muito com esses dois seres com anatomias idênticas, mas com comportamentos tão diferentes que pedem exame de DNA, contagem de cromossomo, ressonância magnética, eletro-escambau-lograma , para comprovar que são de fato a mesma espécie: o playboy e o vaqueiro. Agora tá registrado.
Texto...
Acordou atrasado, conferiu no relógio do DVD e se rendeu ao seu, também digital. Tentou a sagrada prorrogação de dez minutos de sono, mas a cabeça a mil já começava a desempilhar as pendências. Desistiu. Desligou o ar, abriu a cortina, de leve, aos pouquinhos, deu uma bizoiada nas varandas da vizinhança, viu que estava tudo no lugar. Banho quente, sempre quente, em uma das quatro estações da ducha, mas quente, ouvindo um CDzinho para quebrar a monotonia. Se enxugou com a mesma pressa de todos os dias, já no automático se sentou de controle remoto na mão, deu bom dia ao Brasil, enquanto mastigava algo pronto, que veio direto da embalagem, ou, no máximo, fez uma escala no microondas. Gostoso, dá pra comer. Armou-se para a batalha com chaves, celular, invólucro de couro cheio de papéis, metade débito, metade crédito, noves fora nada, crachá, o que couber mais nas duas mão, juntas, forjando um baldinho de dedos. Fez a checagem duas ou três vezes, sempre em vão, saiu com a sensação de estar esquecendo alguma coisa. Desceu sem suar, elevador, espelho, tô bem, alisou daqui, puxou dali, tô bem, bom dia, bom dia, bom dia, bom dia. Acionou o alarme, o portão, o rádio, o ar, o carro. Distribuiu o arsenal que carregava e saiu. Vidro fechado, ligado, cantarolando, relaxado, mas ligado. Dez, vinte, quase 30 minutos. Música ruim, “quero não obrigado”, música boa, out-door , notícia ruim, “tenho não, neném”, notícia boa, propaganda, out-door, “precisa não irmão”, out-door, ops, estacionamento. Computador, Internet, cadeira que gira, que corre, que serve até para sentar. Agenda, reunião, computador, telefone. Almoçou no refeitório, discordou da má qualidade da comida, pagou, foi ao banheiro, “opa! Como é que tá? Beleza? Licença” . Escovou os dentes. Computador, telefone, agenda, reunião. Não necessariamente nessa ordem. Foi ao banco, da sua cadeira, que também serve para isso, pagou tudo e guardou os recibos. Encheu o baldinho de novo, “té segunda, té segunda”. Acionou alarme, carro, rádio, farol. Ouviu música, notícia e leu placa, disse um monte de não a pedestres. Chegou. Ligado, parou, olhou ao redor, ligado, entrou e desacionou tudo. Ligou a TV e escolheu 31 dos 169 canais para assistir, ligou para mãe, falou com amigos, ou amigo, dependendo do dia ou dos últimos dias. “Ah, vamos marcar alguma coisa”. “Vamos, eu te ligo para confirmar”. Dormiu. Acordou sem pressa. Abriu a cortina de uma vez, olhou para o céu e viu que dá praia. Ligou, combinou, furou, saiu. Freiou, acelerou, freiou, acelerou, xingou e chegou. Comeu, bebeu, banhou, ligou, xingou, levantou, abraçou, conversou, riu e pagou. Acelerou, freiou, acelerou, freiou e chegou. Sem xingar. Foliou, leu, escolheu, combinou e saiu. Assistiu. Ou riu, ou chorou, ou se irritou, ou curtiu, ou se arrependeu. “Ou” inclusivo. Voltou, se conectou, consultou o saldo. Cinco dígitos. feliz, sorriu. Feliz, dormiu.
O outro acordou antes da hora. Procurou luz pela janela escancarada e viu que ainda era noite. Noite mesmo, tudo preto. Silêncio demais, os bichos ainda dormem. Dormiu também.
Acordou na hora e pela janela, que parecia ainda mais escancarada, viu que já não era tão noite. Um vermelhinho já se juntava com o pretume. O berro do galo lhe confirmou. Levantou.
Arrependido e angustiado voltou a deitar. Esquecera de rezar. Rezou, rezou e rezou. Levantou, agora sim, podia seguir.
Não acordou a mulher porque já não a achou na cama. Esfregou os olhos, se esticou todo. Jogou água no rosto, ge-la-da, como todo dia. Como todos os dias do ano.
“Diiiiia”, saudou a mulher com um sorriso. Não bastou, lhe abraçou, e puxou a prosa matinal, sempre bem baixinho. Aquele cheiro de café que vai até os ossos incensava a cozinha. Esticou a conversa e com o humor de toda manhã se desmanchou na risada. “Psssssiiiiuu!”. Teve que se controlar. Uma mordida aqui, um gole lá e uma voltinha até o alpendre. Em goles cuidadosos, de pouquinho, para não queimar, bebeu café e respirou fundo. Expirou fundo também e naquele ritmo de uma olhada na paisagem entre cada passo, lentamente, sempre lentamente, voltou. Comeu mais, conversou mais e, como inevitável, sorriu mais, e alto. “Psssssiuuuu”. Ainda mais alto. Atendeu e riu baixinho. Beijou um , beijou o outro e a outra. Se vestiu, se calçou , se esticou todo de novo e, depois de ouvir os estalos das costelas, saiu.
Caminhou, encontrou Libano (Líbano, adaptado ao seu sotaque), bateu aquela prosinha monóloga de todo dia, alisou daqui, alisou dali, dois tapinhas no pescoço forte, e montou. Esporou o amigo, sem pena, por achar que ele não precisa, e partiu sincronizado na pisada. Peito, rabo, corda, banco, balde, foice, corda, peito, foice, coice. Suou, parou e bebeu água. Puxou, empurrou, bateu, amarrou, suspendeu, pisou, enficou, forçou, quebrou, prendeu. Por horas foi ágil como os seus dotes permitem, sereno com sua índole impõe.
Parou, bateu a poeira, juntou tudo, limpou o que tinha de limpar, prendeu quem tinha de prender, soltou quem era de soltar. Repassou cada canto do curral para não esquecer nada e saiu tranquilo, com a certeza de que nada tinha esquecido. Montou sem prosear e em duas esporadas chegou. Libano sempre volta mais rápido que vai.
“Benção”, “benção”, “benção”. A sinfonia cristã lhe recebeu. Se lavou e foi lembrado que o sol esquenta, mas a água não. Se sentou. Olhou para todos num convite, respirou fundo para rezar. Se transportou dali por alguns segundos. No ar, um barulho surdo que cada um só ouve o seu. Também com a respiração sinalizou o retorno à mesa. Comeram enquanto conversaram, brincaram enquanto comeram. Como sempre, virou bagunça, então com um olhar repreendeu. De pronto, o silêncio voltou. Continuaram comendo. Pediu um pouco mais de água, que também de pronto, sempre de pronto, foi atendido. Se pegou na brincadeira de novo, e dela muito sorriu, sem precisar repreender. Pelo menos por enquanto. Se esticou todo, ouviu os estalos, empurrou o prato e olhou para o nada. Depois de mais um tempinho, fez ouvir aquela respiração profunda que muda a cena e se levantou. Conversando foi até o alpendre, pendurou-se deitado como a rede permite, pediu silêncio, que, óbvio, se fez, e cochilou. Quando acordou já foi se esticando e depois dos estalos, só depois, se levantou. Beijou uns alisou a cabeça dos outros, deu mais umas três recomendações que também serão atendidas e partiu.
Fez mais um monte de força. Foi ágil mais um monte de vezes e voltou. Voltou exausto. Tomou banho, ge-la-do. Gostoso. Mais uma prozinha na cozinha, foi atualizado do nada que acontecera naquela tarde e sentou para comer. Menos barulhento, comeu, tomou café, respirou bem fundo, olhando para a paisagem formada só de céu. Levantou e caminho até o alpendre. Saquinho numa mão, xícara na outra, se sentou para fumar. Sentado, escolheu o papel, juntou o fumo, entre uma olhada no céu e outra lambeu o necessário, tomou mais um golinho e acendeu. Viu que não funcionou, deu mais uma olhada no céu, acendeu e tragou. Com a mulher conversou sobre a roça, as crianças, o tempo, o tudo e o nada. Soube que a bezerra do vizinho foi encontrada, morta, com a ajuda de urubus. Se espantou por um segundo, se resignou no outro e continuo a prosa. Peito cheio, contou que a vaca manchada tinha se levantado, se gabando do remédio de folha que seu pai lhe ensinara. A mulher lhe sorriu com orgulho. Por ali ficaram entre silêncios e frases curtas, contemplando o nada até que o sono bateu. Entrou e, sem pressa, dormiu.
Acordou, bem mais devagar que ontem. Olhou para o céu, o tempo estava feio, tudo azul e sol grande. Comeu vagarosamente, penteou um, amarrou a outra, juntou todos e saiu. Devagazinho, prozeando, “diiiiia”, “diiiiiiiiia”, “diiiiiiia”, saudava a vizinhança pelo caminho. Se benzeu, escolheu o lugar de sempre, se emocionou como sempre e se sentou. Fez questão de cantar cada canto, rezar cada reza e repetir cada petição. Entrou na fila, recebeu o corpo, comeu sem mastigar, se benzeu, e, emocionado, saiu. Encontrou todos de sempre, perguntou tudo de sempre, riu como sempre, deu as mesmas repostas, e se despediu.
Na casa da mãe pediu benção, deixou a prole, pegou o sexto e partiram. Agora só os dois. Diiiiiia, tá de quanto dona Rosa? Faz por cinco, seu Pedro? É de quando essa macaxeira? Tá feia essa carne, viu Zé? Separaram algumas coisas, compraram outras, desistiram de outras, devolveram as mesmas. Caminharam mais, compraram mais, conversaram mais, reclamaram de novo e sorriram com as explicações que obtiveram. Pechincharam bastante, o bastante para encher o cesto. Nem todo. Suados, cansados e tranqüilos caminharam, ele na mão esquerda, ela na direita, carregando a quinzena.
Ele parou na venda, ela seguiu. Derramou um gole no chão, bebeu, fez careta, se arrepiou e gostou. Fez as mesmas perguntas, teve as mesmas respostas, ouviu uns causos, contou outros, bebeu, sorriu até que cansou. Partiu. Pediu a benção de novo e sentou. Tomou café, comeu bolo e proseou. Fez um cigarro, enquanto reclamava do barulho. Acendeu e fumou ouvindo conselhos. Novos e velhos, às vezes um às vezes o outro, às vezes os dois ao mesmo tempo. Pediu a benção mais uma vez, esperou que a prole também pedisse e saiu.
Caminhou, caminhou, subiu, desceu. Sem prosa, cansado. A volta sempre é maior. Só o caminho, a paciência não. Preferiu repreender que responder.
Chegou, se banhou, bem geladinho. Trocou de roupa, beijou todos e foi beijado. Da porta do quartinho viu no berço um pessoinha.
Feliz, sorriu. Feliz, dormiu.
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