Questões que me atormentam...

Tuesday, November 07, 2006

O que é um ponto branco numa mancha escura?

Contexto

08 de julho 2004, cheguei de Porto Alegre e encontrei uma caixinha sobre a cama. Tinha uma roupinha de bebê com o escudo do São Paulo e a ultra-sonografia em um porta-retrato. Pirei da mais gostosas de todas as loucuras. Acho que esse texto abre uma série, que irá desde o ponto até ....


(Esse é o meu favorito!)



Texto...

Todo mundo já ouviu ou leu uma daquelas piadas no formato de adivinhação, sempre envolvendo um ponto de alguma cor em algum lugar. O que é um ponto azul voando alto no céu? É um urublue. O que é um ponto prateado no jardim? É uma formiga de aparelho. Um ponto amarelo no mar? Ruffles, a batata da onda. E por aí vai.

O que mais impressiona é quantidade de piadas que existem neste formato e a imaginação do povo para dar novos significados a um ponto. É incrível como um ponto, a forma geométrica mais primitiva, mais resumida e limitada, pode ser tudo no mundo. Depois de ouvir duzentas adivinhações, rendido à inesgotável capacidade de metamorfose do ponto, você cansa de tentar adivinhar e deixa essa besteira para lá. Pô, um ponto é um ponto e ponto.

Aí um dia que você abre uma caixa de presente, encontra uma roupa de bebê com o escudo do seu time e aquela foto esquisita num porta-retrato. Pelos milionésimos de segundo que o cérebro precisa para matar a charada, você se pergunta: o que é um ponto branco numa mancha escura? A resposta é simples: tudo!

Nada que a imaginação popular tenha se esforçado para multiplicar o significado de um ponto é páreo para o exponencial de significado que aquele ponto tem. O nada que lhe aparece aos olhos é o complemento do tudo que aquilo representa. É como se alguém tivesse isolado a proteína que curará o câncer, ou exterminará a AIDS, ou não deixará ninguém mais morrer de doença alguma. É uma porrinha de nada que mexe e mexerá com a sua existência de forma intensa, revolucionária e exagerada como nenhum adjetivo que conheço pode expressar. O retrato do meu filho na ultra-sonografia é a imagem que vem com a resolução perfeita para o sentimento que carrega: indescritível.

O primeiro filho (no comum de dois gêneros), é uma espátula que divide o bolo da sua vida em duas partes que jamais se misturarão. Ele é o anúncio do nascimento de três novas pessoas no mundo. Ele, o pai e a mãe. De uma forma muito mágica você percebe que é a segunda metade da sua vida que começa, onde você seguirá em caminho contrário da primeira, partindo da posição de protagonista, personagem principal e evolutivamente ocupando o posto de coadjuvante, figurante, figurinista, maquiador, produtor, operador de câmera e, por fim, platéia. De tão grande é a magia do fenômeno que não há melancolia nessa constatação. É com a alegria do pedreiro todo sorridente, dependurado no andaime, ou do agricultor de sorriso aberto, zero dentes, cara rachada e coração cheio, que você se orgulha dos seus novos papéis. Que coisa maluca pode fazer alguém com essa trilha pela frente estar se sentindo sorteado, eleito, o “rabudo” do ano? Por favor não responda, não me explique, para que continue deliciosamente mágica como é.

O momento que registro é especialmente gostoso. É o período em que ter filho é só bônus, tudo tá no crédito, é a estação da chuva. O ponto que apelidei de “cabeção”, meio por prenúncio, meio pela sua estética inicial, ainda não chora, não tem fome, não está doente, não custa nada, enfim, não pede, só dá. Somando a isso conta-se a minha constrangedora felicidade de poder pensar no filho fora dos padrões que fui pensado (será que se cria? Tem comida para mais um? O pai vai estar solto? ).

Até agora não senti a famosa responsabilidade que pesa aos ombros de todo novo pai. Só consigo pensar no fato (ou feto?) como “o amanhecer de um lindo dia”, que Kátia cantava nos sábados de faxina. Sendo racional, diria que talvez porque como tudo nos meus deliciosos 32 anos de existência veio na hora certa, na idade certa, da pessoa perfeita, e muito facilmente concebido. Não o sendo, que aliás prefiro, diria que vou esquecer aquelas aulas de biologia que minhas limitações na matéria me impuseram tanto esforço para guardar. Não me venha com esse papo de óvulo, espermatozóide, “crossover”, meioses repetidas, embrião, blá, blá, blá, etc. Aquele ponto é um milagre, com tudo de transcendental, ilógico, imponderável e absurdo que o bom milagre carrega. É materialização de tudo que fui , sou e serei. É causa, fato e repercussão. O antes, durante e depois.

É o antes porque dá um veredito sobre a vida que tive até então. Felizmente um veredito favorável, porque me sinto digno de tê-lo. Sem hipócrita modesta diria que se estivesse na fila para nascer gostaria de ser escolhido por um pai como eu. Pelo que sinto, pelo que penso, pelo que procuro ser e sou. Porque acredito que se fosse o meu o padrão de comportamento, o planeta estaria melhor.

Ainda no passado, ele também acaba com aqueles vacilos que lhe batem sempre que se pensa como pai, do tipo “será que estou pronto?” “Tá na hora?”. Ele chega e lhe mostra que já devia ter vindo. Ele dá forma concreta a uma responsabilidade que lhe guiava diariamente, lá no subconsciente, em cada passo que dava. A necessidade de ter uma resposta verdadeira e digna para as perguntas que você imaginava seu filho fazendo por cada ato do dia a dia. Em quem votar, em que passeata participar ou não participar, em que movimento se envolver, dar ou não esmola no sinal, no que fazer para compor o mundo que ele habitará e o que não fazer para não “deixar para o meu filho a Pampa pobre que herdei do meu pai”.

Mais particularmente sua ausência era uma angústia silenciosa, uma frustração que me ameaçava, como um perigo diário, porque tinha muito medo que meu pai não conhecesse meu filho. Que nós três não desfrutássemos em matéria aquela tríade causa-fato-repercussão, que não tivesse o momento sacro de apresentar-lhes. Para um, dizer o orgulho que tenho do outro. Para o outro, apresentar a primeira e talvez maior responsabilidade da sua vida, que é fazer jus a sua ascendência. Era um pouco de paranóia, mas sentia muito isso. “Sentia”, porque na primeira prosa que tiver com o ponto vou apresentar-lhe o velho. No primeiro e-mail que passar para o velho, vai a foto do ponto.

O ponto é presente porque, por mais que o planeta terra se esforce para dizer o contrário, ele é o único acontecimento da sua vida. Não está acontecendo nada no trabalho, nada na cidade, nada no prédio, nada no país, muito menos no mundo. A única coisa que você vive no momento é aquela imagem. Bate uma letargia que você se esquece o que está fazendo e cada lugar que passa durante o dia. Nada no mundo lhe aflige. Tudo que se quer é correr para casa para falar no assunto até o sono deixar. Completando o gozo do momento, acompanha o brilho nos olhos da mãe, que por ser ela, sinto grande parte de tudo tão bom que tenho experimentado.

É também futuro, porque ao olhar no espelho você é outro cara. Não sei como, mas o fulano que está lá não é mais você, é o pai do ponto, é Sr Cabeção. Para quem ainda não tinha se acostumado a ser o marido da sua mulher, ser o pai do ponto é fácil demais. Dá vontade de botar um outdoor na cidade, de um lado o ponto, do outro o autor da façanha.

Não me lembro como foi meu nascimento neste mundo, só posso imaginar a quantidade de descobertas que fiz por hora, nos primeiros dias de vida. Posso imaginar também quantos sensações tive quando bebê e, por ser um bebê, como todas foram inéditas. Eu só sei que se foi metade do prazer de renascer como pai, nunca mais eu vou ter pena daquela figurinha enrugada e indefesa que tá sempre chorando.

A língua nos ensina que o ponto significa o fim de um período. Aquele ponto na ultra-sonografia, ao contrário, é o início de todos.



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