As vítimas da desigualdade
Assistindo ao debate de candidatos a prefeito de Salvador, fiquei indignado com a visão elitista de todos que falaram da violência e miséria urbanas. O grande problema era não poder andar no carro de janela aberta, não poder caminhar na praia, não poder morar numa casa fora de condomínio. Ninguém, por não sentir na pele, percebia que estava falando de gente morrendo de fome, gente de bem sem oportunidade, gente disposta rendida à mendigagem. Nem os candidatos, nem o jornalista que mediava.
Isso bateu com os vários flagrantes que presencio diariamente, de pessoas da classe média e alta descrevendo o mundo, com extrema miopia, daqui de cima.
O Brasil é líder mundial de “desigualdade social”. Nas grande cidades brasileiras, a “desigualdade social” é gritante, onde condomínio de luxo é vizinho de favela. Boa parte dos candidatos a prefeito tem na sua receitinha papa-voto o chavão de combate a tal da “desigualdade social”.
Mas afinal o que é e de onde vem a desigualdade social?
Na verdade existem duas desigualdades. Uma é aquela que tá na ponta da língua de quem quer se mostrar politizado, aqueles que trazem no discurso um palmo de lucidez acima da turma do “tem é que botar polícia em todo canto”, ou “bandido bom é bandido morto”, ou a minha predileta : “esse negócio de desarmamento vai tirar a arma do homem de bem e deixar o bandido armado”. Essa última é boa demais. O cara tá indignado porque a lei tomou a arma do homem decente, lhe roubando a chance de virar bandido por conta de uma desentendimento no baralhinho com amigos.
É com essa desigualdade, a primeira, que se explica o enorme índice de violência, a origem do poder do tráfico, a insegurança quase paranóica que domina os moradores de grandes centros. Sobretudo aqueles que estão na região superior da escala. É gente que já foi criada com o manual de sobrevivência urbano (talvez inspirado no de Mariguela), que não vacila, que não dá beijo demorado na despedida em frente ao prédio da namorada, que não pára em sinal à noite, que se aproxima do carro como quem não quer nada e, de repente, entra-liga-e-sai, para não dar chance ao assaltante que estava de olho. E por aí vai...
Essa desigualdade explica o MST invadindo fazenda e partindo para os finalmentes no campo. Explica também aquela cara apavorada, de futuro perdido, do mulecote que mete o revolve na sua cabeça no sinal de trânsito. Explica ainda aquele o olhar vazio do pirralho de 10 anos que lhe vende amendoim, “só pra me ajudar tio”, na mesa de bar.
Nos sentimos vítimas dessa desigualdade. Nós, da classe média para cima, não podemos mais andar tranqüilos nas ruas. Nos sentimos vítimas porque não dá para tomar uma cervejinha sem se esforçar para abstrair aquele pobre mendigo. Nada de usar o relógio que ganhou do pai, nada de ir àquele show que o ingresso foi barato demais. Carnaval só em bloco ou camarote, porque na pipoca “o bicho pega”. A tal da desigualdade tem deixado o povão uma fera. Não dá mais para freqüentar ambiente popular. Como vítimas somos obrigados a nos isolar e viver numa redoma formada de janela de carro, playgroud do prédio, muro do condomínio e paredes do shopping. Estamos ilhados nessa selva que a desigualdade semeou ao redor da cidade.
Uma outra desigualdade, a segunda, bem menos badalada, raramente confessada, é a mãe de todas. É a desigualdade que eu vou chamar de pessoal. É a diferença que, inconscientemente (quero crer, para não pirar) a gente faz entre uma pessoa do nosso mundo e outra de fora.
Para ter a dimensão perfeita dessa desigualdade vamos montar uma equação, bastante didática, através de notícias reais que já chegaram a todos nós :
1 – Um executivo da Shell e sua esposa foram barbaramente assassinados em condomínio
2 – O irmão de Zezé de Camargo foi seqüestrado e teve um pedaço de sua orelha arrancada.
3 – Aquela estudante de medicina teve seu corpo todo marcado pela violência do namorado, engenheiro, numa crise de ciúmes.
Mais noticías :
1 – Qualquer jornal que você lê hoje vai ter notícia de morte associada a guerra do tráfico no Rio.
2 – Toda semana algumas donas de casa tem a bolsa rasgada e o dinheiro roubado nas feiras ou ônibus da cidade.
3 – Marido foi preso ontem na periferia porque chegou bêbado em casa e bateu na mulher.
Agora lembre do impacto que as notícias do primeiro grupo trouxeram a sua cabeça. Subtraia pela relevância que deu às notícias do tipo do segundo grupo. Pronto, esse é o resultado. É a desigualde pessoal, a porção da social que cada um carrega dentro de si. Que não se pronuncia, que não se confessa, mas que está impregnada como praga na lavoura.
Uma coisa é você saber que aquele estudante que saiu daqui para tentar a vida nos EUA passou até fome e teve que pedir na frente de lanchonete. Outra é o pedinte na frente do bar a quem você diz que não tem trocado. Os dois estão com fome, mas o segundo não lhe impressiona.
A criança no banco de traz olha o mendigo pela janela e efetivamente vê de lá outro ser de outra espécie. É aquela espécie que tá na pipoca do carnaval, que lota o show de R$5,00, que pede nos bares. É a espécie que, míopes e de barriga cheia, consideramos os algozes que nos sitiam na cidade, nos fazem vítima da desigualdade.
Quem nasceu comendo três vezes por dia, estudou desde os 4 anos de idade, perdeu boas tardes de sono nas aulas de inglês, se matou no bom cursinho para passar no vestibular e queimou as pestanas por quatro anos se sente, naturalmente, digno da vida confortável que conseguiu com seu próprio esforço. Não dá para se sentir culpado, se o cara ralou desde 4 anos de idade. Quantos não foram preguiçosos na escola? Quantos não desistiram na faculdade? Quantos nem no vestibular passaram? Ele não. Foi lá, fez o dele. E agora não tem direito de andar na rua por conta da desigualdade social. O que fazer? Botar o filho no banco de traz, pagar o transporte para o inglês e repetir o ciclo para a próxima geração.
Ele vai cometer com o filho o mesmo erro que o pai cometeu com ele. Esqueceu de mostrar que gente é gente dentro ou fora do carro. Multidão é multidão, tanto dentro do bloco como na entrada daquele show barato. Que maioria esmagadora da outra espécie ralou três vezes mais que ele, jamais conseguiu uma tarde para dormir, baba só em pensar na chance de ir a escola, chega aos trinta anos suando a camisa sete dias por semana e, mesmo assim, tem que escolher entre o gás e a conta de luz no fim do mês. Esqueceu de dizer que o mendigo está lá porque só ele pode andar de carro, e não vice-versa.
Do lado de lá, oprimido, parte da outra espécie se sente menor. Não nos encara de frente, olhando nos olhos. Não vai a todo local e se sente invasor quando entra no shopping para disputa espaço. Parte. Felizmente, só parte.
Como acabar com essa desigualdade? Não é assunto para candidato a prefeito. É preciso que cada lado se movimente rumo ao fim.
Vou começar não morando no condomínio, não indo buscar no inglês e reconhecendo que sou algoz e não vítima da miséria urbana.
Eu recomendo que todo mundo que está do lado de dentro do carro comece a se mexer, porque do lado de lá “o povo tá comendo vidro”. O pedinte do sinal tá botando a arma e pedindo para entrar. O moleque largou amendoim e está vendendo cocaína para seu filho. E aquela turma que tapava buraco em beira de estrada e pedia moedinha pelo serviço se juntou debaixo de barraca, hasteou uma bandeira vermelha e, logo logo, vai quebrar sua cerca.
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