Questões que me atormentam...

Tuesday, November 07, 2006

Rudan


Contexto:

Setembro de 2004. No meu aniversário deste ano, Mi, de uma forma muito poética, me presenteou um cavalo. Era uma caixinha de presente, que quando abri tinha um cavalinho de plástico dentro de um curralzinho. Aquilo significava que eu ganhara um cavalo, que o pai dela, meu sócio, iria procurar para ela comprar. Há cerca de um mês ele comprou e só agora eu pude fugir de Salvador para conhecê-lo. A sensação que trouxe da fazenda depois do final de semana é o que tentei registrar aqui.



Texto...

“Filme de índio”. Era assim que eu chamava os melhores faroestes da TV na minha infância. Meu pai, viciado no gênero, nunca perdia uma tal de sessão uestern, das tarde de sábado. Quando eu botava a cabeça na porta, era para perguntar : tem índio?! Quanto mais tivesse, melhor seria o filme. Tem mais, tinha que ter batalha também. Índio conversando, índio fazendo reunião com soldado, índio plantando, não tinha a menor graça. Se não aparecesse aquele círculo contínuo de índio, girando ao redor do forte (igualzinho ao Forte Apache que eu tinha), naquela tática idiota que parecia treino de tiro ao alvo para os soldados, o filme ficava logo chato. Bom mesmo é quando a batalha cruzava rios a toda velocidade, naquelas perseguições implacáveis. Os índios demonificados, com aquela cara de mau que arrepia a alma, querendo pegar os coitadinhos dos soldados, desesperados para chegar no forte. A água subia num belo espetáculo, quando as duas tropas cruzavam o rio a toda.

Gostava também de Zorro. Um diferente do mexicano, que tinha um índio amigo chamado Tonto. Um tinha um cavalo branco, outro um pampa, aqueles manchados de marrom e branco. Ainda pirralho eu já tinha impressão que aquelas seriam marcas da minha infância.

Agora depois cresci, deixei de assistir um monte de coisa boa, outro monte deixou de passar. O mais incrível é que só agora venho descobri que preciso ver todos aqueles filmes de novo. De repente, percebi que um dos componentes mais determinantes daqueles tipo de filme passava despercebido nos meus olhos. Uma figura cuja ausência faria daquelas aventuras eletrizantes num filme francês, chato, dos mais “cabeças”. Para mim, este elemento ficou como um figurante coadjuvante, aparecendo menos que o figurante, que já não tinha nada a ver com a cena principal.

Eram os cavalos!

Rapaz, impressionante como meus olhos só viam da sela para cima. Cego, cego, cego. Um bicho daquele tamanho nunca me chamou atenção. Pelo menos naquele tempo, porque agora é outra história. Agora eu tenho um. Um cavalo de verdade.

Pois é. É um negócio muito estranho ter um cavalo. Ninguém tem cavalo. Sinceramente, você já viu alguém na rua e imaginou montada num cavalo? Jamais. Dá pra pensar a gatinha no sofá alisando outra, sendo essa peludona. Ou o troglodita arrastando/sendo arrastado por um hot valley. Mas cavalo não.

- Você gosta de animal?

- Gosto

- Tem um?

- Tenho, claro.

- Qual?

Onze em cada dez perguntadores estariam esperando resposta do tipo “uma cachorrinho lindo”, ou “Ming, meu gato siamês”, ou no máximo, com certo constrangimento, o cara poderia responder “eu crio um ramster”. Mas um cavalo? Ah não, ninguém espera que outra pessoa tenha um cavalo. Eu pelo menos jamais esperaria. Se não esperaria que alguém o tivesse, imagine ter?

Um cavalo é um bicho diferente, que você gosta dele, que lhe serve muito e que lhe dá um lazer maravilhoso, como cavalgar de braço aberto, no meio do mato, debaixo de uma chuvinha fina. É uma delícia. Aí você monta demais e passa o dia seguinte descadeirado. Mas muito feliz, como aquela canseira que a gente sente quando joga futebol, toma um banhozinho e põe os pés para cima no sofá. Uhmmmm, que beleza.

O gostar do cavalo também é diferente. É como homem gosta de homem, no sentido “macho que gosta de macho”. Você acha ele uma figuraça, tem o maior cuidado com ele, quer que ele seja bem tratado, sempre pergunta por ele quando está longe e sente saudade da companhia. Mas tudo isso, sem viadagem. Sem muita melação. Quando reencontra você adora, mas externa isso dando uns tapas aqui, uns empurrõezinhos ali, e sai com ele para curtir a vida.

É um gostar sem meiguice. É um carinho sem dengo. É assim porque se trata de um bicho enorme, com uma força física literalmente animalesca e que precisa ser conduzido com certa firmeza, quase virilidade, para que fique claro quem determina o caminho do passeio. Daí para você manter aquele xodó que mantém com bichinhos, fica um negócio descabido. Quase ridículo.

Isso tudo que tá descrito acima serve para qualquer cavalo, mas tem um monte coisa que não diz respeito a “qualquer cavalo”. Coisas que só um cavalo tem. Coisas que só dizem respeito a Rudan, o meu cavalo.

A primeira delas é esse nome, “Rudan”. Pode parecer que é homenagem a um deus Gótico, que sempre se apresentava montado em um enorme cavalo branco. Ou o nome do cavalo em que o general Alemão desfilou na Champs-Élysées, quando Paris foi tomada na segunda guerra. É um nome imponente, que inspira um motivo histórico. E é mesmo um nome histórico. É um apelido que meu pai tinha na juventude, quando vendia sapato, dentre os quais o de uma famosa marca da época, chamada Rudan. Tudo bem que não é uma história imponente, de encher os peitos, mas é história. Como é do meu pai, enche meu peito sempre.

Depois a aparência. Rudan é um cavalo ordinário com pinta de extraordinário. Ordinário porque não é um puro-sangue, ou daqueles engomadinhos de exposição, que vem de fazenda de gente que vive disso, fazer cavalo bonito. Por outro lado é um cavalo que no meio dos ordinários tem um porte assim, de mais “retadão”, mais cavalo que os outros. Claaaaro que isso pode parecer (e ser) babação do dono, mas Rudan é assim. Eu juro.

Pelagem escura que brilha bonito. A cara dele parecer a barba de um cinqüentão, que tá aparecendo os primeiros cabelos brancos. Assim como o cinqüentão, aquele pelinho branco vai se espalhar. De acordo com o especialista no ramo, meu sócio, depois de castrado (aaaai!) ele vai passar por esse efeito maicoujeqsiano, ficando cada vez mais branquinho, até ficar da cor de leite. Não é vitiligo, é um processo normal mesmo. Segundo o mesmo especialista.

Rudan é elétrico. Como é novinho, ele tem energia demais. Tão novinho que vai trocar dentes, que ainda tem dente para nascer. Tudo isso, claro, segundo o especialista. O povo lá diz que ele ainda vai “refazer” muito, que o cavalinho daquele “refazendo” vai virar um cavalão danado. Embora não tenha noção do que seja um cavalo “refazer”, esse comentários me animaram muito. O bicho também não é de ficar muito quieto, tá sempre pronto para acelerar. Se você levantar o braço para ajeitar o boné, ele dá logo um pulo para frente e aperta o passo, achando que vai ser chicoteado. Não há necessidade de açoitá-lo, ou, reproduzindo a recomendação que recebi, “carece nem chicote”. Para abrir a porteira, o cavaleiro não muito fluente sofre um pouco, porque esta é uma manobra que demanda alguns segundos de paralisia do cavalo. Aí não é com Rudan. Encostou, levou mais de 5s para abrir, complicou. Ele já se virou, deu dois passos para um lado, um para frente, empurrou a porteira com a cara, enfim, lascou tudo. Aí tem que dar uma voltinha por ali, até chegar àquela posição novamente. A pilha dele é alcalina, então ficar parado não dá. É como minha sobrinha, que de tanta energia, pegava o cabelo da gente e apertava trincando os dentes, até se tremer de tanta força, só pra dar vazão na “ziguezira” que tinha dentro dela. Rudan é assim, Vivele de quatro patas.

Rudan também é bom de pisada. Você acelera o viageiro[1] e ele vai no vuc-vuc, parecendo o trem, na maior velocidade, sem mudar o passo. Passei várias vezes na porteira da frente para o povo ver a pisada. Aí era só elogio. Para fazer ele galopar precisa muita velocidade, porque antes disso ele segura no viageiro. Cabeça impinada, postura perfeita e tome perna. O melhor é que o cavaleiro mesmo praticamente estreante no ramo não pula nada da sela.

Agora eu vou deixar Rudam descansar. Deixar ele refazendo. Para quando eu conseguir escapar da gincana diária, correr para perto dele, dá-lhes uns tapinhas para matar a saudade e partir, feito menino, curtindo a companhia do amigão, brincando de Forte Apache.



[1] Passo em que o cavalo mantém seu corpo praticamente parado, movendo as patas em pares alternado, dando assim maior conforto ao cavaleiro por chacoalhar menos.

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