Os 100 qualidade.
Outubro de 2004. Em uma discussão regada a caipirosca e guaiamum, veio à tona um assunto que pairava minha cabeça recentemente, que é a cara de loja R$1,99 que as livrarias estão tomando. Todas loucas para vender tudo e a todos, sem nenhuma preocupação com a qualidade do que está sendo vendido. Como acho livro um troço sagrado, quase divino, me incomodei muito e resolvi registrar.
Texto...
Que a televisão é um veículo de péssima qualidade de informação ninguém mais duvida. Saímos de uma época onde se catava dois ou três programas ridículos, do nível que surpreendia como aquilo poderia continuar indo para o ar, e chegamos ao ponto de se precisar de alguns minutos de concentração para lembrar de um programa que realmente valha a pena ver. A TV involuiu do patamar de veículo de comunicação, caminhando para meio de mera diversão e chegando à tônica do quanto pior melhor que temos hoje. Assim, para quem não é evangélico e tem o segundo grau completo, assistir TV hoje é um rito de ligar, correr canal para cima, para baixo, se entediar e desligar.
Apelemos então para o cinema. Pelo menos para o cinema que chega ao shopping que a gente freqüenta. Aí a situação não é menos triste.
Elimine os filmes de super orçamentos, os chamados “bkockbusters”, via de regra de Hollywood, que contam sempre a mesma história, apenas passadas em tempos ou lugares diferentes. São precedidos por outdoors, propagandas na tv, cartazes de “em breve” nos cinemas, críticas em todos os jornais e matérias no Vídeo Show. Elimine também as chamadas comédias românticas, que têm a obrigação de mandar todos os espectadores para casa com o ar de “oh, que lindo”. Por fim, elimine (pelo amor de deus, elimine!) aqueles filmes de heróis da porrada, tiroreio, policias veteranos do Vietnã & CIA LTDA. O que nos resta? Nos resta o cinema nacional, que renasce, sempre com dois filmes em cartaz: um com cara de cinema, como “Abril Despedaçado”, “Madame Satã”, “O Homem que Copiava”, “O Invasor”; outro com cara de programa da Rede Globo, sendo que com duas horas de duração, como “Os Normais”, “Sexo, Amor e Traição”, “A Taça do Mundo é Nossa”. O importante é que está lotando as salas e tirando da cabeça da gente que cinema implica em atores falando inglês + legenda. Nos resta por fim alguma coisa daquele mundo habitado por pessoas que fazem cinema como uma expressão artística. Não necessariamente filme para intelectual. São os filmes de Almodovar, o cinema latino americano, argentino vai muito bem aliás, alguns americanos que fogem do estilo “veja e esqueça” e os europeus, que às vezes dá para digerir.
Conclusão : o cinema também vai mal.
Corramos para o livro, a nossa casinha de tijolos nessa fuga desesperada do lobo da má qualidade. Com o livro é diferente. Com o livro tem que ser diferente.
Primeiramente, porque quem consome livro é gente que lê (dããã) e gente que lê já vem de fábrica gostando de boa televisão, boa música, bom cinema etc. É gente que exige qualidade da informação, que chama de bestial ou banal qualquer coisa que possa ser produzida por alguém sem um talento especial para aquilo. Uma música com estrofes de quatro versos, a primeira rimando com a terceira, a segunda com a quarta? Blargh! Não encanta. Letrinhas de amor apaixonado e saudoso? É Brega. Ensinando dança daquilo e daquilo outro? É brown (baixaria, em baianês), só desce no meio de uma farra. Programa de pegadinha, carnificina urbana, auditório de domingo à tarde? É tv trash. Cinema do tipo “veja e esqueça”? Se não tiver naaada para fazer, pode ser que veja. Se tiver, esqueça.
Depois porque livro carrega uma quantidade de informação muito grande e registra de forma mais solene o que carrega. Você pode falar muito sobre um assunto, mas se alguém pede para você escrever aquilo num livro, tudo muda. Se pensa 200 vezes antes de escrever e se lê outras 200 antes de dizer que está pronto. Salvo para aqueles que têm uma certa fluência no ramo e as palavras emanam mais tranqüilamente. Só que, para se chegar a essa fluência, precisa-se ter lido muito e carregar na cabeça uma bagagem razoável da língua e do assunto. De uma forma ou de outra, geralmente, o resultado de um processo de escrita surge com mais qualidade que aquilo que simplesmente se falou.
Outra característica do livro é exigir raciocínio do consumidor. A mesma história lida por duas pessoas compõe dois mundo diferentes. A fisionomia das personagens, a visualização dos ambientes, as intenções escondidas atrás de cada frase, as emoções trazidas por um parágrafo, a compreensão tiradas das entrelinhas de um capítulo, cada coizinha dessa ganha uma individualidade dada pelo leitor. Se ele não cumprir a sua parte, a história trazida nas letras está morta, não existe. Desta forma o livro instiga o leitor na sua capacidade de raciocínio, percepção e sensibilidade, ao mesmo tempo que desenvolve esse poder a cada leitura que ele realiza. Assim, quem tem o hábito da leitura ou tem um discernimento superior que aqueles que não tem, ou acabará o desenvolvendo, porque o livro é uma verdadeira catuaba para a mente.
Esses fatores sugerem a sensação que a nossa casinha de tijolos está livre dos namoros na TV, testes de fidelidade, Alien X Predador, o Arrocha e o Domingo Legaaaal. Só sugerem, infelizmente, porque a versão blockbuster para as livrarias já começa a se espalhar para todo lado.
Comecemos pelo fenômeno Harry Porter que, como toda coqueluche, concordo com Nelson Rodrigues, não serve. Não posso negar a alegria de ver a pirralhada trocar o Cartoon Network por uma maçaroca de 300 páginas, chegando ainda a demonstrar muito mais fascinação. Mesmo que tenham sido tangidas pela mídia, quase como gado, para cima daquele exemplar. Não vou nem insistir no fenômeno Paulo Coelho, que o pessoal considera boa literatura, se respaldando nos milhões de exemplares vendidos (assim como Amado Batista ou a Eguinha Pocotó). Quero só me focar em dois rótulos que são ícones dessa fase do livro de massa : os mais vendidos e os 100 maiores nãoseioque de qualquercoisa.
A primeira prateleira de cada livraria, ali de frente para a porta, como uma comissão de recepção, é uma pilha de livros espremidos, com uma plaqueta alardeante que os credencia como “Os Mais Vendidos”. São os livros que estão nos cartazes, que o cara deu entrevista em Jô Soares, ou que gira em torno de uma “ celebridade” (no sentido torpe que aquela novela associou à palavra). São comerciais, são feitos para quem não gosta de ler. Foram escritos pensando exclusivamente em vender e procuram se manter numa superficialidade que não assuste o leitor típico de Paulo Coelho. Biografia de jogador de futebol, piadas, o livro que deu origem ao filme que está fazendo sucesso no momento e todos os assuntos candidatos a alguma notícia no jornal da TV, que esteja na mente da maioria das pessoas alfabetizadas do país. Por isso são os mais vendidos.
A segunda é uma grife, algo como uma série Sexta-Feira 13 literária, com o mesmo formato, às vezes a mesma capa e, principalmente, o mesmo jeitão no título : Os 100
Esses fenômenos são rachaduras lamentáveis na alvenaria do livro, porque ao invés de levar o padrão de raciocínio quase bestial necessário para assistir ao Fantástico, ou ao último lançamento de Hollywood, para aquele um pouquinho mais elaborado necessário para se absorver e saborear um bom livro, está fazendo exatamente o contrário. Está baixando o livro para o patamar da trivialidade, à caça de uma massa deseducada, que agora nem nos livros terá um caminho para se educar.
Eu poderia ser mais otimista, como sempre costumo ser, e celebrar o fato de que pelo menos o povo começa a ler mais. Eu poderia fazer também uma análise sociológica manjadíssima sobre o nível cultural do povo etc. O fato é que além de que o nível é esse há 500 anos e essa explosão dos livros “comerciais” é bem recente e ela é que me incomoda no momento.
Assim que conseguir ler a pilha que a recente fase humus laborius deixou acumular, vou sair por aí, buscando outras livrarias, talvez as menores, certamente as que não estão nos shoppings, esperando agora encontrar uma que tenha uma prateleira enorme, bem destacada para Os 100 Livros Menos Vendidos do Mundo. Deve ser lá onde eu vou encontrar os melhores exemplares. Porque, afinal, com livro tem que ser diferente.
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