É Carnaval na Bahia
Contexto:
Fevereiro de 2005, com Mi grávida de nove meses não brincamos o carnaval. Em casa, assistindo pela TV e convivendo com a galera que estava na farra, fui sedimentando observações que já fazia há muito tempo sobre a festa. Como a gente estará se afastando de Salvador em breve, resolvi registrar antes que as observações se dissipem.
Texto...
O trânsito está cheio de cones, protegendo caminhões que carregam e descarregam um entulho esquisito, muito mais parecido com lixo que com matéria prima da alegria. É praticamente impossível alguém vislumbrar o cenário que aquele monte de ferro e folhas de madeira, tiradas aos poucos do caminhão que atrapalha o trânsito, são capazes de compor. Quem conhece já sente o coração acelerado, projetando na cabeça o pandemônio que estará em ação daqui a alguns meses, ou dias. Os lugares estão ficando cada vez mais lotados, as filas agora são para tudo e ainda maiores. É gringo batendo em gringo, gente perdida, gente pedindo informação, gente querendo adivinhar e, quase sempre, errando. Os outdoors avisam os últimos ensaios, festas, feijoadas, lavagem, abadás, camarotes, camisas. Tudo está se esgotando, embora a festa não tenha nem começado.
É isso. A cidade está no clima. Quem vai já se entrosou e combinou, acertou dia, hora, local, bebida e outras cositas mais. Quem vem já reservou hotel, arrego, bloco e encontros, agora só falta vir. A atmosfera é de final de campeonato, quando os capitães ainda estão trocando flâmulas, adrenalina a mil, vibração total, embora ainda não esteja acontecendo nada.
Os primeiros acordes são locais e moderados. A turistada pesada ainda não chegou, a grande massa de pipoca tem trabalho amanhã, por isso não veio hoje e se veio, pegou leve. É o aquecimento, primeiros 15 min, quando os dois times “estão se estudando”. O desenho geral da festa já está montado, é possível nessa fase se fazer a melhor observação de como funciona todo o balé. O observador ainda pode se movimentar nos circuitos, ainda acha vaga para estacionar, bebida gelada na rua e, se for voltar cedo, pode até trazer as crianças. O carnaval já está no ar, mais ainda em tintas leve, como numa versão dietética, sem o peso que tem potencial para se apresentar. Os primeiros dias da festa, fora do calendário oficial e nacional, são uma bela alternativa para quem não tem a verve, o fogo e vigor necessários para o ápice da farra. Talvez até por isso sejam os dias chamados dos alternativos.
Sexta-feira. O tempo fechou. Agora tá todo mundo
Em todas as suas dimensões o carnaval de Salvador está na rua, com tudo que já se falou sobre ele e mais inúmeros novos capítulos sendo escritos em cada esquina. Para ser brincado, curtido, vivido e quando não restar opção de um verbo similar, ou sangue correndo nas veias, o carnaval está na rua para ser observado, assistido e traduzido em um registro escrito.
A primeira dimensão que salta aos olhos é a da organização. Profissionalíssima, de uma eficiência comparável a Marines matando, a estrutura que coordena o carnaval faz a silenciosa mágica de manter 2 milhões de pessoas, 300 atrações e três circuitos fluindo freneticamente, onde todos encontram o que precisam para cumprir seu papel. Por mais silenciosa que consiga ser, é ao mesmo tempo impossível não percebê-la. Na ressaca da primeira manhã, em todas as rodas de comentários e avaliações da noite anterior o assunto vem à tona. Tudo está funcionado perfeitamente! Trio não quebra, bloco não atrasa, atração não cancela, TV transmitiu tudo, a polícia, o banheiro, o moleque do isopor de cerveja, o guarda de trânsito, tudo, tudo que deveria estar, estava, fazendo o que devia e como devia. É a mais absoluta ordem em uma ambiente que tinha tudo para ser caótico. A festa é também privada e portanto um grande negócio, nos dando uma impressão desconfortável que o poder público é um empregado, que empresta o salão para os grandes grupos do carnaval façam sua festa e, claro, façam seus milhões.
Os trios não são mais o elemento fundamental da festa. Os blocos são. Eles definem as atrações, lotam as ruas, são filmados, entrevistados e perseguidos por todos. Dão o desenho do carnaval, definem os locais e horários onde cada ator do espetáculo vai estar, seja por interesse, seja por obrigação. O trio é um componente, muito importante, mas apenas um componente, contido na mega estrutura bloco.
Todas as cores do país estão presentes na festa, tudo de bom e de ruim de ser brasileiro. Meu amigo Joel didaticamente me esclareceria que é um micro mundo, onde os elementos que formam o macro estão lá devidamente representados. A diversidade de sons, danças, raças, tradições, maneiras de festejar e respeito às diferenças estão ombro a ombro na cidade. Ressalvaria uma grande interseção que se destaca nessa torre de babel carnavalesca, um ponto em comum no meio de um zoológico de expressões da festa, que é a enorme alegria e orgulho de ser baiano. Mesmo que para cada um deles “ser baiano” tenha significado e, principalmente, intensidade muito diferente, todos carregam esse sentimento (ou “energia” como um baiano diria) que parece ser meio causa, meio conseqüência da grandeza do carnaval que se faz aqui.
Nesses dias você pode ainda perceber que a Bahia é irreverente, tem uma musicalidade incrível, sabe e gosta como pouca gente de fazer uma farra. Que ela é africana, inegável e deliciosamente africana. Definitivamente, um lugar muito encantado para nascer um país. Esses elementos fazem uma festa de colorido variado e intenso, impossível de não se apaixonar.
Entretanto, por mais colorido que seja o carnaval, o olho de um sociólogo pode retratá-lo em um quadro preto e branco, que nos remete ao macro mundo que, segundo Joel, não pode ser negado. O caráter privado da festa leva a um ambiente onde brancos transitam folgados, animados pelas melhores atrações, com acesso às melhores bebidas e ambientes, enquanto os pretos se esforçam para não intervir neste deleite. São pretos servindo, segurando corda, empurrando preto, batendo, apanhando, prendendo e sendo preso, espremido entre a corda e o andaime do camarote, garimpando um centímetro de asfalto para o botar o pé, e tudo que de direito lhe resta, sempre que facilite ou pelo menos não atrapalhe o desfile dos blocos de brancos, sendo aplaudidos por camarotes lotados por brancos, onde quem é preto está
O baiano responderia ao sociólogo dizendo que faz uma festa tão extraordinária que participar dela, mesmo como figurante, é um privilégio que vale a pena ser vivido. Com os lugares certos e nas horas certas, tarefa mais difícil a cada ano, brincar e ser inesquecivelmente feliz no carnaval da Bahia ainda é possível.
Como um sociólogo baiano concluiria, eu tenho que concordar com os dois.
Terça-feira. O dia começa com cara de fim. Tá todo mundo se despedindo desde a primeira hora, convidando para o próximo ano, agradecendo e dizendo o quanto foi bom. Uns agradecem que o fim dos dias chegou milésimos antes que o fim das forças, uns acham que devia ter terminado desde ontem, outros tem lágrimas nos olhos, de saudade e vontade de mais um diazinho de festa.
Quem trabalhou está sempre satisfeito, com a missão cumprida ou o lucro obtido. Quem brincou leva no coração e no currículo uma belíssima história, para um dia juntar os filhos na sala, pegar um monte de pipoca, suspirar fundo e, orgulhoso, começar a narrativa: uma vez a gente foi passar o carnaval em Salvador...
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