Meninos, eu vi.
Oito de maio de 2005. No Amigão, transmitido ao vivo para todo país, jogaram Treze e Fluminense pelas quartas-de-final da Copa do Brasil. Um jogo histórico, inesquecível, daqueles que se cometará por década, como o tal time do Campinense, o time do Zé Pinheiro, hexa-campeão paraibano. Eu tive a honra de estar lá, para viver aquelas duas horas incríveis e sentir a alegria mais intensa que experimentei em minha vida. Para contar uma história bem contada aos meus netos, resolvi registrar alguns detalhes.
Texto...
Era uma noite fria, como são frias todas as noites entre abril e setembro em Campina Grande. Porém, era só no ar que pairava a frieza daquela noite, porque como em todas as ocasiões em que a empolgação é requisitada aos campinenses, a cidade se tornou um caldeirão, borbulhando a vários graus acima de cem.
Era o Treze na Copa do Brasil. Era o Treze contra o Fluminense. O Treze ao vivo em mais de 60 milhões de salas brasileiras. Era mais um dia daqueles que eventualmente enchem o peito da Borborema, tornando muito gostoso ter nascido nessa cidade. Era mais um dos momentinhos em que os amigos Brasil a fora ligam e escrevem para exclamar na maior autivez: viu Campina?!
A história já estava feita. Jamais um time da Paraíba chegara tão longe em campeonato nacional. Jamais tínhamos feito tão bonito, figurando tanto tempo nas reportagens esportivas, nos comentários de jornalistas dos gigantes daquele Brasil que aparece e manda nos meios de comunicação. Lembro-me que antes mesmo de começar essa fase da competição já ter dito que tudo queria é que o Treze não saísse de forma vexatória, que não nos expusesse ao ridículo de uma goleada daquelas em que os jogadores já nem comemoram os últimos gols. Só queria que a gente não tivesse que recorrer àqueles argumentos do tipo salários, tradição do clube, condições de treinamento, alimentação, etc para concluir que de qualquer forma tinha sido uma trajetória histórica. Então fui ao campo sem ambição, sem maiores expectativas, de certa forma justamente para poder escrever essas linhas, para poder contar aos futuros paraibanos como Antônio[1] que naquela noite eu estava lá, não me contaram, não fui espectador, fui a rigor um dos milhares de atores que viveram essa história.
Com a derrota simples na primeira partida, o objetivo de não fazer feio já estava praticamente cumprido. Mas diferente de mim, talvez porque só recentemente fui repatriado, quem nasce em Campina Grande tem espírito Marinês, pensa e deseja tudo grande. Com ambições enormemente maiores que as minhas, a cidade era um pandemônio comparável com a abertura de São João, sexta-feira de Micarande, domingo de campanha eleitoral ou qualquer outro dia em que haja um centímetro de oportunidade para se transformar em uma grande festa. Meu pai saiu só para ver a movimentação e quase não consegue voltar. Parte porque as ruas estavam lotadas e intransitáveis, parte porque não nega ser daqui e se empolgou com a euforia, sem querer mais largá-la.
Tinha gente dizendo que vencia, tinha gente dizendo que seria fácil, tinha gente – os mais campinenses de todos - com placa “Galo Rumo a Tóquio”. Veio gente das cidades vizinhas, de João Pessoa, até raposeiro para torcer pelo Galo, mesmo que sob o argumento sacana de que, assim como o Treze, era acima de tudo Campinense.
O estádio estava lotado, completamente pintado de preto e branco. A visão que obtive subindo as escadarias de acesso à arquibancada era, pelo menos, tão emocionante quanto à dos jogadores subindo o túnel. O som numa freqüência que só as multidões conseguem produzir embalavam a maior massa de trezeanos jamais reunida. Um sorriso incontrolável de quem ver o Chiclete com Banana passar me invadiu o rosto e agradeci por estar ali, vivendo aquele fusué. O cenário estava perfeito para o espetáculo que estava por vir, que será narrado repetidamente, por anos e anos, do São José ao Calçadão.
O jogo foi um jogo de futebol como o outro qualquer, que passado um primeiro tempo ruim, a equipe da casa pressionou, cercou e encurralou o visitante. Ocorre que de normal nesse caso isso não tinha nada. Para mim não era normal porque quem estava massacrando no segundo tempo era o Treze. Sim, o Treze(!), aquele que eu via treinar lá no PV[2]. Quem estava encurralado era o Fluminense, que vinha de sete vitórias seguidas, campeão carioca, líder do Brasileiro, tendo jogos transmitidos na TV dia sim, dia também. Para o resto da torcida também não estava nada normal. O Treze ainda não tinha feito um gol naquele timinho? Da Silva perder dois gols daqueles no mesmo jogo? O banderinha daqui, rapaz, anular o gol do Treze?! Tava todo mundo indignado, gente passando mal, Nadja[3] chorando de ódio do “time véi bosta que não faz nenhum gol”. Quando perto do fim foi perdido um daqueles gols impossíveis de se perder (embora todos os times tenham perdido contra o Treze em defesas que a torcida achava normal nosso goleiro fazer), o desespero e indignação se generalizaram.
Como o Fluminense tinha um a menos, embora tenha sofrido duas expulsões, já que o Treze cumpria a tradição de um jogador expulso por jogo, ninguém aceitava aquele placar de 0 X 0. Principalmente porque o Flu, o Tricolor das Laranjeiras, era cada vez mais fluzinho. Simulava contusão, criava confusão e botava para fora todo o repertório ironicamente inventado para times pequenos como o Galo apelar em decisões com grandões como o Flu. Nesse momento o juiz, do ápice da sua imparcialidade, deu apenas três minutos de acréscimo onde cabiam pelo menos seis. Mais desespero ainda. Aquilo completou um leque de atitudes tendenciosas adotadas desde o primeiro apito, levando à loucura completa os três ou quatro últimos trezeanos que ainda estavam em seu juízo perfeito àquela altura.
Enquanto metade da torcida já desistia, porque o relógio mostrava que o juiz encerraria o jogo a qualquer momento, a outra metade, da qual eu fazia parte, estava extremante animada, já que o jogo mostrava que o gol tava para vir a qualquer segundo. E foi assim que ele veio.
Em um lance em que eu vi (e havia) muito mais impedimento que em outro já anulado minutos atrás, a bola ficou pulando, pulando na área, até que, com quase displicência, o jogador trezeano desferiu o chute, fazendo a rede balançar, em uma cena que jamais esquecerei e que para sempre agradecerei estar lá para testemunhar. Por dois segundos, devido ao trauma de minutos atrás, hesitei procurando e temendo os sintomas de anulação, como juiz parado, jogador reclamando, torcida calando. Não vieram! E como foi gostoso, enlouquecedor e intenso que eles não tenham vindo.
Junto comigo explodiu um estádio lotado. Junto comigo enlouqueceu uma multidão até então revoltada, angustiada, desanimada ou conformada. Não havia fôlego bastante para que o grito botasse para fora o que se sentia ali. Não havia pulo alto o bastante para extravasar aquela emoção. Precisaria mais dez anos de meio de rua para eu ter palavrões suficientes para xingar naquela hora. Seria preciso abraçar toda arquibancada-sombra para me sentir suficientemente confraternizado naquele momento. Era definitivamente a mais intensa alegria que jamais experimentei no esporte. Pela rompante que chegou, talvez a mais intensa alegria que conheci na vida.
Como é lindo um estádio feliz. Como é linda aquela multidão formada por homem xingando, mulher descabelando, criança chacoalhando no braço do pai, e todo mundo envolvido na “ofegante epidemia”, na mais pura felicidade.
Era o futebol mostrando a sua magia, fazendo o pequeno bater no grande, cada pobre dali mais feliz que todos os ricos do mundo. Levando estranhos a se abraçarem como irmãos, fazendo Campina, tão diminuta como a própria palavra já diz, se tornar enorme, pois “Grande” era pouco demais para aquele gol.
O que se segue é o que a história resumirá em “o Treze perdeu nos pênaltis”. Claro que esse resumo será injusto por negligenciar as defesas do goleiro trezeano nas cobranças, a competência dos nossos batedores, levando a série até às cobranças de goleiro. Será injusto por não lembrar que quem perdeu foi exatamente quem podia, porque Wagner Diniz e Beto (escrevo os nomes para registro) foram grandes astros dessa campanha memorável. Injusto também por não lembrar que o erro cometido na cobrança capital do trezeano foi aplaudido pela torcida, num reconhecimento velado à grandeza daquela noite.
O resumo da história talvez também negligencie o fato de que, embora consumada a derrota, a torcida cantava com propriedade o sentimento que enchia meu coração até o momento em que escrevia esta suposta crônica :
“Eu
sou trezeano,
com muito orgulho
e muito amor-ôôôô”
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