Romper ou corromper
Julho de 2005. Atento à “crise” política que está em toda tv-rádio-jornal-Internet, resolvi registrar a minha impressão, minha forma de compreender essa aparente avalanche que ferve no país.
Texto....
Quando o cenário político ofereceu todas as variáveis favoráveis à chegada do PT ao poder nacional, dando de fato a sensação que Duda Mendonça brilhantemente traduziu em “Agora é Lula”, deu-se a falsa impressão que chegava a hora da virada.
De um lado o governo FHC terminava melancolicamente, ostentando praticamente como única façanha a já esgarçada alegria de “o pobre agora está comendo mais frango”, a mesma que o trouxera ao Planalto, longínquos oito anos antes, a reboque do Plano Real. De amarguras tinha recordes de desemprego, inflação projetada de dezoito por cento ao ano, as privatizações frustrando as expectativas de melhores serviços e preços, uma estrutura estatal desmanchada, além de mais uma dezenas de outras.
As outras forças de grande musculatura política, PFL e PMDB, não engoliam a antipatia velada do candidato oficial, imposto goela a baixo por FHC, e estavam por isso uma afogada em escândalos de grampo e painel do Senado, a outra pronta para ir com Lula assim que fosse chamada.
O único adversário possível de bater o tetra-candidato Lula era a sua própria candidatura, se construída em parâmetros fáceis demais de ser batidos, ou repetisse estereótipos já derrotados nas vezes anteriores. Esse perigo foi igualmente afastado com o nascimento do “Lulinha paz e amor”, em cenário cor-de-rosa em vez de vermelho, que abriu as portas da classe média preconceituosa, limpando o caminho rumo a sonhada rampa.
Quando a euforia crescia e a frase “agora é Lula” já soava “puts! Parece que agora é Lula mesmo!”, um fato muito sério passou discreto pelos olhos e corações empolgados daqueles dias. Diante de uma tremida do mercado, todos os candidatos, inclusive o operário, foram às pressas ao Planalto assinar uma “Carta aos Brasileiros”, que de “aos brasileiros” só tinha o título, avisando às forças econômicas que ninguém mexeria naquele joguinho animado de enriquecer especulador, há anos jogado por aqui.
Outros fatos igualmente sintomáticos desfilavam na frente de olhos cegos de alegria e expectativas. O candidato à vice era um megaindustrial do PL, formando fileiras com a turma do PTB de Roberto Jefersson, que embora tenha fama nacional recente, é uma das raposas mais antigas do parlamento, além do PP, honrosamente habitado por Dorneles, Delfin, Maluff & Cia LTDA, e o PL da Igreja Universal. Na base de “o que vale é voto na urna”, sempre mais oportunista que Dadá Maravilha, ACM e sua turma também eram bem vindos na reta final.
Na verdade não era exatamente empolgação que cegava aqueles olhos. Boa parte deles era cega simplesmente porque habitava aquela faixa de discernimento de quem se emociona com Globo Repórter e se diverte com Faustão. A outra parte, mais perspicaz, apostava que todo aquele capital político, acumulado pela comoção nacional que levava Lula ao governo, seria gasto metade em um “chute na bunda” do relicário que o rodeava, outra metade numa trombada de frente com as lendárias “forças ocultas” que dominam os destinos nem tanto democráticos do hemisfério sul. Esta segunda metade sabia, como bem definiu Frei Betto, que Lula chegava ao governo, mas não chegava ao poder.
Em primeiro de janeiro de 2003 este país era só expectativa. A turma Globo Repórter-Faustão esperava salário mínimo de R$500,00 a partir de maio. As velhas raposas e os interesses por elas representados esperavam que Lula cumprisse à risca a “Carta aos Brasileiros”, deixando tudo como estava e sempre esteve, inclusive a confortável proximidade delas com o poder. O pessoal de mais discernimento aguardava de bandeira na mão e carro de som ligado a hora em que o presidente democraticamente eleito meteria a mão na mesa e gritaria que “esse país agora só tem um dono: seu povo!”.
Ignorando Bill Cosby (“eu não sei o segredo do sucesso, mas o do fracasso é querer agradar a todo mundo”), o caminho escolhido pelo Governo Lula foi o fio da navalha, o equilíbrio sobre uma linha tênue que desenha uma fronteira caótica, buscando inaugurar uma interseção quase impensável entre o conjunto de expectativas e interesses, provavelmente excludentes, que haviam se instalado. O objetivo estratégico parecia ser a transição lenta para um modelo político-econômico mais autônimo, mais nacionalista e justo. Seria um tratamento homeopático, de forma que no final de oito ou doze anos, em um governo seguinte, mais à esquerda, com o mesmo apoio popular, se tivesse condições para virar a mesa tão boas quanto Lula teve para chegar a Brasília. O desafio era a habilidade para manusear o conjunto de variáveis conflitantes que se apresentavam.
Do lado econômico essa receita parece ter sido mais feliz. O equilíbrio das contas públicas à base de superávit primário gigante, arrecadação voraz e exporta-tudo, foi mantido em um ritmo de crescimento que chegou a alegrar. Pelo caminho, ficaram algumas baixas sérias, mas administráveis, como a perda dos fundadores do PSOL. Um morde-sopra com Europa e EUA tem dado bons avanços nas relações exteriores e comerciais, registrando talvez a ala deste governo mais capaz de agradar a todas as expectativas. Enquanto na economia a tentativa de decepcionar um pouquinho e corresponder bastante a todos seguiu com considerável sucesso, na política o cenário é mais viciado e, consequentemente, mais difícil.
Das variáveis que davam o governo ao PT mas não o poder, o modelo político é o menos disfarçado. O partido do governo chega com apenas 92 dos 257 deputados necessários para se aprovar um mero projeto de lei, ou dos 345 para mudar uma linha da constituição, sendo o cenário no Senado ainda mais hostil. Como aprovar mudanças então? Como governar? Apelar para o civismo dos representantes do povo, lembrando-os que os interesses do país têm que estar acima dos individuais e coorporativos? Na Suíça, talvez. No Brasil daqui a 200 anos, espero eu. Hoje, ou se lançaria o povo na rua, nos modelos Venezuela-Chaves e Argentina-Kirchner, ou se abriria o livro de nomeações, reunindo os abutres por cargos e, num jogo quase “quer quanto pelo seu voto?”, se trocaria cargo por apoio. Esta foi a opção do governo Lula. Este foi, talvez, seu pecado original.
O expediente secular do “toma-lá-da-cá” é indomável. A história mostra que a sede de quem pede não tem limite e empurrará para longe os limites éticos de quem precisa dar. Rapidamente cargos não saciam esta sede de quem pede, levando quem dá logo para as mensalidades. Com o mine-parlamentarismo aparentemente implantado no executivo, Lula se mostrava desenvolto no papel de chefe de Estado, enquanto que Dirceu e sua turma se viciavam e se comprometiam no modelo de governo que escolheram construir. É exatamente neste comprometimento que se origina toda a fragilidade imposta à estratégia inicialmente traçada (agradar a todos enquanto se prepara para virar). É precisamente por aí que ela começa a ruir e precisará ser substituída, ou pelo menos se reinventar.
É preciso se perceber que inflação de primeiro mundo, polícia federal na rua, liderança internacional exercida por Lula, vitórias na OMC, pregões eletrônicos fazendo licitações de verdade, reforma agrária produtiva, respeito aos movimentos sociais, reestruturação do ensino público, software livre na veia, água para o norte do Nordeste, autonomia no petróleo e um carisma ainda imbatível do Presidente-candidato são algumas das realidades que, além contrariar interesses de toda a elite política e econômica, desenham para 2006 um cenário praticamente irreversível de sucesso para o PT-Governo Lula. Diante disto o que resta ao interesses contrariados? O que resta àqueles que ficaram de fora do trem de adesão, ou vêem nos novos rumos os seus interesses seculares em apuros?
Resta o “golpe”. A rasteira.
Não o golpe denunciado pela cúpula encalacrada do PT como forma de defesa, supondo uma teoria da conspiração mais vulgar para justificar o escarcéu em que aparentemente está metida. O golpe que agora é dado é um ippon, uma virada que reverte a situação de absurda vantagem que apresenta o oponente, de forma que num movimento repentino, como uma entrevista à Folha de São Paulo, possa jogá-lo na lona, vencido e de preferência sem capacidade ou possibilidade de reação. Assim como no judô, o ponto ideal para se aplicar o ippon é aquele em que o adversário apresenta uma fragilidade fatal. Fatal porque é facilmente atacada e, sobretudo, porque nesta fragilidade se apóia toda a sua estrutura. No caso do governo do PT um congresso voraz no lema “dá-cá”, ao ponto de eleger o medonho Severino, parece ter criado esta fragilidade, conduzindo a cúpula do partido a um lamaçal que tornou o governo da esperança vulnerável ao golpe capital das elites, outrora torcedoras do medo.
É neste ponto que o ataque está sendo feito. Com toda força e agilidade que interesses representados por Veja-Folha de São Paulo – Estadão – Globo – ACM – Bonhausen - PSDB são capazes de despejar. Neste momento toda a estrutura petista está a caminho da lona. Por enquanto, só a figura do presidente é poupada. Nitidamente para não virar bagunça geral, como se não se quisesse botar a ruínas o quartel que se deseja ocupar daqui a pouco.
Embora pareça ter sido de supetão, o reboliço que está instalado, revelando uma cúpula podre do partido emblemado pela ética, é um fato previsível, de certa forma parte de uma seqüência, do espetáculo que iniciou nas alianças e concessões feitas pelo ainda candidato Lula, em meados de 2001.
Com um pouco de lucidez enxerga-se que uma série de desafios está no ar. Qual o poder de reação que a figura ainda emblemática do presidente pode esboçar? Heloisa Helena tinha razão? Para trazer mudança de fato é preciso romper estruturalmente? Há alguma maneira suave de transição que não implique em contaminação pelos venenos mais sujos da estrutura de poder que temos? Que opções nos restam em curto prazo? Se a eleição fosse hoje à tarde, em quem se votaria para presidente? Quem estaria menos desabonado que o já desabonado governo atual? Com o modelo político atual tem como governar sem sujar as mãos? Haverá esse dia em que estaremos tão de pé que poderemos “meter a mão na mesa” e enfrentar o modelo político-econômico que nos é imposto? Será que Chaves e Kirchner escolheram melhor? Estas são as perguntas macro a serem respondias. Esse é o ganho que a tal crise pode nos trazer no atacado.
No varejo, fica a panfletagem da impressa que pode, frenética em destruir o sentimento de aspirações que o brasileiro comum começa a ter. Aspiração de ser um país mais limpo, de ter uma opção ética e nacionalista de poder. Afinal, povo que aspira, daqui a pouco vai querer sonhar e realizar.
Aí complica, certo?
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