Questões que me atormentam...

Tuesday, November 07, 2006

Tolerância mil

Contexto:

Janeiro de 2006, conversando no TRE, lembrei dessa história que traz uma das características que mais admiro em Oliveiros. Aquela que será provavelmente a mais valiosa herança que ele vai me deixar: a sua amistosidade. Não tem desafetos, não odeia ninguém, não construiu inimigos e consegue conviver com gente de toda espécie. Simplesmente porque, como Marcelo, seria capaz de dar um odioso disco de Madona a um amigo, só porque ele gosta.





Texto...

Nesses dias de tão pouca paciência e tão muita afobação, em que “tolerância zero” virou até slogan engraçado, lembrei-me de um episódio marcante da adolescência, que recomendaria como um antídoto para o estado de espírito que a gente tem hoje.

Que Madona lance a luz sobre essa epidemia de intolerância...

Cursava a segunda série do segundo grau, hoje ensino médio. Na época (já) era militante fervoroso e os ideais comunistas eram construídos e debatidos, além da cozinha de casa, com professores e amigos de sala. Um amigo em especial trazia uma afinidade maior, talvez porque o cara tinha um perfil parecido com o meu, era filho de militante perseguido pela ditadura (ele no Chile, eu aqui mesmo) e quase nascera em cima de um Jipe, fugindo do estádio nacional, onde Pinochet fazia um sorteio mata-não-mata. Com esse amigo, além de política, eu debatia quase tudo, todas as formas de arte e, sobretudo, música.

Na mão dele vi o primeiro exemplar do antológico “Cabeça de Dinossauro”, dos Titãs. Conheci também nesses debates Ratos de Porão, Plebe Rude, Garotos Podres e outros espécimes undergroud da época, ora em nossos papos no colégio, ora em visitas mútuas. O cara já gostava de funk, sabendo dançar e tudo. Óbvio, numa versão absolutamente diferente do modelo atual, zero bunda de fora! Era um entrosamento que nascia na sala de aula, se expandia pelo corredor, nas festas em finais de semana, desembocando próximo à área, onde fazíamos uma dupla de ataque perigosa. Aliás, no esporte também tínhamos afinidades por sermos metidos a atletas, ele de handebol, eu de basquete.

Dentro de toda essa afinidade havia um ponto de ruptura, uma discordância praticamente insuperável, por ser uma diferença radical. Na verdade, já naqueles dias, não tínhamos a menor vergonha de sermos radicais em boa parte dos posicionamentos que tomávamos. Toda essa celeuma era causada por uma mulher (tinha que ser, né?). Não que a gente tivesse se apaixonado pela mesma. Não que alguma mentira intrigante tivesse sido plantada por uma garota para criar inimizade. Não, nada disso. Simplesmente eu a-do-ra-va (separado, como bicha gosta de falar) a cantora Madona! Eu me amarrava nos shows música + coreografia que ela fazia. Gostava como gosta todo mundo chegado a “cultura” pop. Gostava por nada. Porque era animado e me dava uma vontade boa de sair dançando, daquelas que hoje os tambores de maracatu me causam. Era uma música pobre, duma mulher que ora falava como uma virgem, ora convidava todo mundo para celebrar um feriado. Ou seja, música-vazia-superficial-de-gosto-pequeno-burguês-imposta-por-uma-coerção-imperialista-das-gravadoras-multinacionais. Imperdoável!

Eu nunca tocava no assunto, mas vez por outra alguém chegava e perguntava “viram o novo clipe de Madona?”. Vixe! Fechou o tempo. Eu me animava todo para comentar, meu amigo me olha com aquela cara de nojo que os baianos fazem antes de perguntar “você é viado, rapá?!”. E assim esse assunto ficou meio censurado por alguns anos.

Certo dia, como em todos os dias de prova, saímos mais cedo do colégio e subimos caminhando a ladeira rumo ao centro, para fazer hora até a saída do pessoal dos outros colégios, que a gente encontrava para paquerar e conversar besteira na praça. No caminho fizemos um dos programas prediletos, que era parar para comprar/olhar discos.

Garimpamos as bandas e sons que curtíamos, mostramos um monte de disco um ao outro, elogiando um, metendo o pau em outro, de forma que escolhemos um ou dois cada para comprar. Desde o primeiro momento, ele me sacaneava com o novo disco de Madona na mão, que custava uma grana, falando pra todo mundo ouvir que eu gostava daquilo. “E aí? Não vai gastar o dinheiro do mês nessa pérola não?!”. “Compra o disquinho da Madona, compra”. E eu, levando na boa, respondia já provocando que estava muito legal.

A gente foi para o caixa, pagou os discos, eu levando um e ele dois, saímos cada um com sua sacola, cruzando a rua em direção à praça.

Antes de chegar ao ponto da paquera, ele me parou no meio da praça, tirou da sacola o disco novo de Madona e disse: “Toma viado, vai ouvir tua porcaria”.

Eu primeiro fiquei sem ação. Depois dei um puta abraço no sacana que naquela hora me passou uma das mais preciosas lições que acumulei na vida.

Embora eu saiba “decó” desde aquele dia, só recentemente me restou aprender de verdade: a gente não deve associar um sentimento a uma opinião. A gente não precisa odiar o cara porque discorda dele, nem vice-versa também. O fato de pensar/agir diferente não deve descredenciar ninguém ao nosso convívio. Essa intolerância, além de ser raiz de desgraças em toda parte do mundo, torna o nosso ciclo de convívio pobre, linear, só de gente que pensa e age igualzinho, que pouco acrescentará à nossa visão de mundo.

Naquela manhã, em frente à Lobras, Marcelo me presenteou de maneira muito singela e surpreendente com essa caríssima lição, em forma de um disco vermelho, da cantora Madona.

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