Questões que me atormentam...

Tuesday, July 17, 2007

"Deixa o bichinho..."

Texto

Um dia, quando era professor de faculdades particulares, fui chamado à sala da coordenação para, mais uma vez, tratar de queixas apresentadas por alunos, que sempre rondavam a severidade, excesso de exigência, intransigência e outras características que me definiam nos corredores. O que poderia ser mais uma das dezenas de conversas iguais, onde era obrigado a explicar (imagine!) que o aluno precisava fazer alguma parte do esforço no processo de aprendizado, foi na verdade um divisor de águas. Naquele dia reconheci minha impotência total na tentativa de passar formação àqueles jovens.

O aluno tinha tirado zero no trabalho, por ter copiado conteúdo integral da Internet, sem referência alguma, sem aspas, assumindo como se fosse seu. Na correção do trabalho, eu havia anotado o site de onde viera o conteúdo e posto a única nota a que ele fazia jus.

Com quase trinta anos de idade, aquele aluno se fazia acompanhar pelo pai, que indignado me argumentava que zero é para quem não fez nada. O filho teria feito alguma coisa, e merecia uma nota baixa, mas zero era resultado da perseguição que eu viria fazendo ao aluno, etc, etc...

Caiu um raio na minha cabeça, naquela hora. Eu precisei de alguns segundos para manter o prumo e montar um discurso que tentasse fazer contato com aquele planeta estranho em que aquelas pessoas viviam. Quando consegui aterrissar, expliquei didaticamente, com muita calma e resignação, que de fato o rapaz tinha feito alguma coisa. Tinha cometido um crime, previsto e tipificado no código penal como plágio e violação de direito autoral, com pena prevista de multa e cadeia de até um ano e meio em caso de reincidência.

Aquele cenário me ensinou muito claramente que eu lutava por uma missão impossível. Como poderia tentar dar formação a um cara, cujo pai larga suas atividades para resolver um problema acadêmico de um marmanjo barbado, e vem à escola defender indignado um ato de absoluta desonestidade? Um crime? Nem com trilha sonora do Metálica e Tom Cruise de protagonista dá para passar formação para um cara desses.

É isso que me remete à minha trincheira. Ao que chamo de meu bunker. O lugar onde me armo e me posiciono com todas as forças que tenho para resistir aos ataques maciços desses invasores muito poderosos e perigosos. As paredes da minha casa são como meu campo de batalha, onde travo a guerra entre o que quero deixar para meus meninos e o que o mundinho lá de fora insiste em impor. Um mundinho feito em cima de desejos compulsivos de compra, um império absoluto da beleza (não interessa o que significa, o importante é que seja bonito) e uma aversão ao raciocínio independente, individual, pessoal e intransferível.

Como diz Luiz de Sena, o mundo está troncho. Todo mundo concorda com isso. Daí quando me perguntam, com ar de censura, se eu quero mudar o mundo, eu respondo com outra pergunta: por que? Você está gostando do jeito que ele está? Então, depois que entendi que o mundo não se muda de cima do palanque, mas sim na mesa de jantar, na reunião de trabalho, no ponto do ônibus, etc... tenho dado muito mais importância às coisas que a maioria, por um jeito muito latino de ser, costuma deixar pra lá. E reconheço em experiências terríveis quase todos os dias situações extremas que vieram a acontecer, tiveram aquele desfeche, simplesmente porque láááááá atrás alguém não tomou uma atitude, não se posicionou, e resolveu deixar para lá.

Veja esses crimes que dão enorme repercussão, porque meninos de classe média estão envolvidos. Onde nascem esses bandidos bem nutridos, lindinhos, com cara de coluna social? Nascem dos “deixa para lá” que eles encontraram na vida. Quando resolveram que não iriam à escola hoje. Quando não tiraram notas boas pela primeira vez. Quando foram pegos na primeira mentira. Quando se esquivaram das primeiras responsabilidades que lhe foram atribuídas. Quando aos 12 anos de idade, aos gritos, tratou o pai ou a mãe como um coleguinha da rua. Alguém deixou isso pra lá, e agora chora nos corredores de delegacia se perguntando o que fez para merecer isso.Na verdade não foi o que fez. Foi exatamente o que não fez que deixou as coisas chegarem àquele extremo. Seja qual for a razão para não ter feito, já que hoje leva-se uma vida que assumir a postura de nunca “deixar pra lá” é quase um ato heróico. Com as inúmeras horas de trabalho, a competitividade eterna, o corre-corre para manter uma vida de classe média, chegar morto em casa, doido por um banho e uma cama, e se depara com um filho empombando para comer chocolate no lugar da janta, dá uma vontade gigante de deixar pra lá. Mas como em quase tudo que experimentei na vida até agora, o caminho mais fácil nunca é o mais correto.

É preciso ser Caxias mesmo, ser cri-cri, levar na ponta da faca as coisas dentro de casa, porque a coerção externa é grande demais (para não dizer “foda!”). Eu tenho consciência que com toda a dedicação e militância por valores mais humanos, meus hábitos corriqueiros de consumir cultura, falar sobre política, prezar muito por decência, honestidade, simplicidade e não me importar muito para aquelas verdades e padrões, que quase todo mundo quer provar que é verdade só porque é padrão, etc.., mesmo assim, daqui a alguns anos, eu posso olhar para um dos meus filhos e, inconsolável, me perguntar : como é que uma porra dessa pode ser meu filho? Porque as tais dedicação e militância talvez sejam bastante apenas para empatar com o que eles viram na tv, aprenderam com os amigos da escola, ou na turma do bairro. Agora, e se eu não me entrincheirar? Aí amigo, é derrota de goleada. Tenha certeza que o moleque vai ser o que nos dias de hoje equivaleria a um ouvinte de forró de plástico, pegador marombado, daqueles que passa a semana se planejando para “bombar na balada” e que se conhecer Ariano Suassuna, tem certeza que ele é pernambucano.

Eu tenho buscado sabedoria para não deixar para lá coisinhas importantes e, ao mesmo tempo, não me tornar um cara chato demais, que pareça pedante, mais profundo, mais humano ou mais correto que todo mundo. Tenho a impressão que os anos têm aos poucos me ensinado esse meio termo. Espero muito que um dia acabe aprendendo fazer esse balanço, porque, definitivamente, deixar para lá eu não consigo e nem quero tentar.

Eu posso até perder para a pressão que o mundinho exerce da porta para fora. Mas ele tenha certeza que eu vou vender essa derrota caríssima.

É possível também que eu não consiga modificar o mundo, fazendo-o deixar de ser um lugar tão escroto como é. Mas o direito de não me sentir cúmplice dessa escrotidão... ah, desse eu não abro mão.


Contexto

Vendo crimes cometidos por filhinhos de papai, principalmente em grandes cidades, me bateu uma reflexão sobre o pedaço dos pais que tem/falta em cada filho desse. Daí renovei a convicção que o tal do educar (de verdade) é uma missão para pelo menos tropas de elite. Quem não estiver disposto, faça um favor a esse planeta: naaaaaada de filhos, tá bom?