Questões que me atormentam...

Sunday, August 10, 2008

“Eu não sou daqui. Eu não tenho nada...”*

Depois que vira adulto, a gente pode descrever a vida que viveu, construiu e está construindo através de um conjunto de decisões que tomou. Às vezes tomou de forma até displicente, em momentos que não tinha a menor noção do impacto que aquela opção escolhida teria daquele dia em diante em tudo que vivemos. Repare que dessa lista de decisões algumas são comuns a quase todo mundo, e a opção selecionada nesse tal questionário da vida define muito a personalidade de cada pessoa, o jeito de viver e o que hoje se chama comumente de perfil.

Ultimamente uma destas decisões tem reincidido nos meus momentos de devaneios, em que fico sozinho, mesmo que rodeado de gente, matutando a vida, nas decisões tomadas, nas opções escolhidas e nas que estão por vir. A decisão que tenho muito avaliado recentemente é aparentemente boba: qual a melhor opção, ir ou ficar?

A pergunta parece ser simples, mas a resposta e as conseqüências dela são enormes, gravíssimas e às vezes definitivas.

Ficar em sua terra ou ir morar fora, em busca de uma vida melhor, ou maior?

Eu tenho amigos que optaram por ir morar fora. Uns fora de suas cidades natais, outros fora do país. Uns estão fora há alguns meses, outros há alguns anos. Em comum, todos eles eventualmente, com mais ou menos freqüência, mais cedo ou mais tarde, acordam se perguntando se realmente vale a pena. Eles conhecem outras culturas, até falam outras línguas, alcançam uma condição econômica e qualidade de vida que certamente não teriam em suas cidades. Eles viajam para vários lugares, assistem a shows, eventos, espetáculos incríveis, alguns andam na rua tarde da noite e não precisam olhar de lado nem guardar o relógio, outros se batem na rua com grandes novidades que só vemos aqui pela TV. De certa forma eles encontram tudo que foram lá buscar, ou até mais que esperavam alcançar.

Mas o perturbador é que eles também carregam um buraco gigante que só poderia ser preenchido contraditoriamente com tudo “daquela vida vulgar” que eles levavam onde estavam, lááá longe, no meio de tudo de ruim, atrasado, provinciano ou restrito que eles fizeram questão de largar para trás. O buraco no coração deles só poderia ser preenchido com uma gargalhada escrachada, uma gentileza gratuita, um gesto de intimidade, uma paisagem ou rua específica, com o aconchego que só certos pequenos cheiros, vozes, pessoas e lugares poderiam preencher.

Eu tenho, por outro lado, muitos amigos que ficaram em suas terras natais, e mesmo com todo o chamego que estar em casa pode nos fornecer, em vez daquele enorme buraco da saudade, eles carregam no peito uma grande curiosidade, uma sensação de que está faltando, cenas que imaginam sempre de como seria morar fora, acordar em outra cultura, sentir zero grau no inverno, comer e fazer aquelas coisas incrivelmente diferentes que se come e adotar uma série de atitudes interessantes que seriam bizarrices aqui e banalidades lá. Eles tocam a vida com a incômoda dúvida se estão sendo pequenos, tacanhos, minúsculos diante de tudo que poderiam ser. São pessoas que têm capacidade, formação e oportunidade para morar em Salvador, São Paulo, Paris, Oxford ou Califórnia, mas resolveram ficar por ali, juntinho de sua gente.

Como em todas as decisões marcantes da vida, esta nos coloca aparentemente em uma encruzilhada. E dessa vez, com duas péssimas opções: ficar sendo “medíocre” ou ir para ser saudoso. De uma forma ou de outra, é estar condenado a ser incompleto. Perceba que para sair da encrenca, é preciso topar uma postura não muito simpática. Ou se assume que o cantinho onde nasci, os domingos com minha família e ver meus filhos convivendo com os primos é um mundo suficiente vasto e interessante para mim, ou se livra dos laços afetivos que trazia do berço, tornando suas principais referências e saudades em uma coisa menor, incapaz de fazer sua felicidade incompleta.

É ou não é uma dúvida cruel?

Como na música de Rita Lee, pode-se conseguir ficar livre daquela vida vulgar lá de casa e, no final, concluir que se tem tudo, só que “agora só falta você”. É ficar no apartamento confortável comendo filé mignon, ou sair nas madrugadas cantando, fazendo serenata como naquela música que diz “nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres”. É escolher de que lado vai ficar, seja daqueles que ficam como eu, ou dos que vão como o andarilho Ramon, na canção de Bráulio Tavares.

Parece que meu professor não estava brincando. O mundo é cruel mesmo.

Contexto

Por ser de Campina Grande e ter cursado universidade lá também, eu convivi com um grupo de pessoas cuja metade estava buscando formação e qualificação para em seguida ir para longe de casa, e outra metade já estava longe de casa adquirindo a formação superior. Essa disputa entre a saudade e a prosperidade tem me acompanhado até hoje, com experiências próprias em alternar períodos perto e longe “de mãe”, com Milena e as baianas que moram com a gente, com meus amigos agora formados, casados, pais e longe de casa, etc..

*Conta a lenda que morando em Londres e mesmo eventualmente acometido pelo deslumbre que uma mega metrópole exerce, Caetano Veloso estava tomado pela saudade de tudo que considerava seu, do micro mundo de onde tinha vindo. A forma que ele achou de traduzir essa falta foi cantando uma de suas memórias mais singelas, e que era ao mesmo tempo a maior de suas saudades: a risada de sua irmã mais velha, Irene.

“Eu não sou daqui, eu não tenho nada

Quero ver Irene, quero ver Irene

Dar sua risada”

(Caetano)