Questões que me atormentam...

Tuesday, March 13, 2007

"Um macho, adulto e branco sempre no comando..."

Contexto

Março de 2007. Quem tem convivido comigo ultimamente já deve ter me ouvido comentar muito sobre essa extrema facilidade de ser homem, em face da complicação eterna de ser mulher. Perto do dia internacional da mulher, eu resolvi registrar essas observações só para agradecer por não existir dia internacional dos homens, do adulto ou da consciência branca.

Texto

Um dia eu estava no apartamento de umas amigas para celebrar alguma coisa, aniversário eu acho, e havia mil providências sendo tomadas para que uma farrinha típica de estudantes de mestrado começasse. Aí Ed Porto abriu a porta do apartamento e cruzou a sala com um botijão grande de água mineral entre os braços, levando um sorriso sacana no canto da boca e recitando um verso de Caetano na canção O Estrangeiro:
-Um macho adulto e branco sempre no comando...
Aquilo que parecia ser mais uma piadinha boa e bem bolada de um dos Los Portos, era na verdade uma das constatações mais sagazes que ouvi de anos para cá. Convivendo diariamente com mulheres, morando e dividindo tudo na vida com uma delas, cheguei à mesma conclusão que Caetano e Ed. O mundo é todinho desenhado, de cima a baixo, para os homens. Adultos e branco, a rigor. Mas por enquanto vamos tratar só da parte “homem” da frase.
Depois que passamos pelos brevíssimos anos da infância, quando não existe “crianço" homem e criança mulher, e somos apenas crianças, criaturas assexuadas, os caminhos entre os seres eleitos do sexo masculino e os seres lascados do sexo feminino começam assim se apresentar.
Começar a paquerar na escola é um momento de afirmação para o garotinho. Os pais encontram a coleguinha dele no shopping e cochicham aos amigos, cheios de orgulho.. “Ei! Olha a namoradinha de Antônio ali. Não é linda? O bicho tem bom gosto... Puxou ao pai, puxou à mãe...”. Agora, na casa da menina, essa conversa geralmente não passa nem na esquina. Ela nem tem paquerinha, detesta essa conversa de namoro e se um dia inventou de puxar esse assunto antes dos quinze anos, passou logo dez dias sem Internet e recebeu visitas inesperadas do pai na hora do intervalo.
Aí vem o namoro. O pai empresta o carro ao filho de menor, que ele mesmo ensinou a dirigir, dá um dinheirinho a mais e, se brincar, a chave de casa. Afinal ele agora está namorando, né? Gasta mais, precisa pegar a namorada, vai fazer programas mais interessantes, etc. Na casa dela, a conversa começou dois meses antes, rodeando a mãe, amansando o pai, apresentado como amigo, até que vem a notícia que ela está namorando. Em parte dos casos cai uma nuvem de tensão na família, que lembra a casa branca na crise dos mísseis de Cuba. Na outra parte dos casos o pau quebra mesmo. Rola grito, castigo e de vez em quando umas porradinha, pra aprender a deixar de ser enxerida.
Quando a gente cresce mesmo, vem o trabalho. Lá os homens mandam, ganham mais, são chefes, falam grosso e tem as melhores oportunidades. Isso não é teoria, não é hipótese. É estatística, e de todas as partes do mundo. Para ganhar igual ao homem, a mulher, simplesmente por ser do sexo feminino, tem que ser bem melhor que os colegas. Que tal?
Outro desdobramento muito natural na vida é o casamento. Desde a cerimônia, aquilo para o homem é muito trivial. No tal dia, a gente pega a roupa alugada (provavelmente alugada pela noiva), veste, faz a barba, entra no carro e vai para a igreja. Enquanto isso, em algum outro lugar da cidade, tem um exército se descabelando para que todo o longo processo preparatório que antecedeu o momento chegue ao fim sem falhas. As últimas das seiscentas e trinta e oito providências estão freneticamente sendo tomadas, enquanto um corpo tenso, estressado e carregando a obrigação histórica de ficar pelo menos deslumbrante, está sendo apertado, colocado em cima de um troço torturante que ousam chamar sapato, pintado e penteado, tudo simultaneamente, com a maior desfaçatez que se possa produzir para esconder o estresse que paira no ar.
Depois da cerimônia vem o dia-a-dia mesmo. Antes as mulheres tinham uma vida muito desgastante, repleta de tarefas repetidas e infinitas, como cuidar de casa e educar filhos. Agora elas se emanciparam, passaram a trabalhar fora. Isso implica que elas passaram a ter estresse, pressão e tudo que a vida profissional traz de peso para os homens. Só que tem um detalhe cruel, muuuuito cruel. Elas não se livraram nem um pouco da vida desgastante de dentro de casa. Ou seja, agora elas se cansam com filhos, com a empregada, a babá, etc em casa e se estressam lá no trabalho. Perfeito. Enquanto isso o homem continua omisso em casa, e agora tem a mulher dividindo as despesas e assumindo as responsabilidades que eram só deles antes do mundo ficar moderno. Chato, né?
O que é ter filho para um homem? Emoção, alegria, responsabilidade, realização, etc. Para a mulher? Tudo isso, mais quinze quilos, dois peitos com elefantíase, um sono que nem morfina dá, uma barriga gigantesca para carregar, consulta médica toda semana, dores, riscos de aborto, azia, enjôo, preparação de enxoval, quarto e lembrancinhas, cremes e cremes, desconforto para dormir e, para fechar, uma dor equivalente a se cagar uma jaca. Nesse momento, por exemplo, eu e minha mulher esperamos o segundo filho. Para mim é ver ultrasonografia de mês e mês. Para ela é todo o resto.
Vamos viajar? Bora! O homem tem duas ou três decisões para tomar antes da mala estar pronta e fechada. A mulher, ah a mulher.... Isso eu não vou nem tentar descrever. Só acordando com uma no dia de uma viagem é que se pode saber como aquilo é complicado. Qualquer doutorado é projeto de iniciação científica diante daquele processo.
Agora um dia de praia. Ele bota a sunga, pega óculos, carteira e telefone e está pronto para ir. Ela resolve ir como o sétimo biquini experimentado, sofre por uns 40min se depilando, passa protetor 30 no rosto, 8 no corpo, 15 no cabelo, 10 nos lábios, veste a canga, a sandália e o chapéu, os colares, um relógio que combine e enche uma bolsa que parece viagem, com tudo que não precisará mais na praia. Quando chega lá ele mostra o barrigão tranquilo, porque sempre tem um amigo mais barrigudo na mesa que não tá nem aí pra barriga dos dois. Ela fica sem ar, com a barriga encolhida, completamente traumatizada porque maioria das amigas tem menos barriga e faz questão de lembrá-la disso.
Por fim, só para completar a vida fácil da mulherada, ainda tem aquelas infinitas complicações que as próprias mulheres impõem à classe. Mulher é um bicho extremamente crítico, exigente, que repara em tudo, acha qualquer defeito existente e se não existir ela inventa, principalmente se for em outra mulher. Arrancar um elogio verbal de um homem é difícil. Agora, façanha mesmo é arrancar um elogio (sincero!) de outra mulher. Boa parte dos trabalhos que elas executam é exigência de outras mulheres, e só será percebido por elas. Tem um amigo que quando ver essas novas modas e produções femininas diz assim “por que elas não perguntam a gente?!”. Eu não sei. Mas se perguntassem certamente diríamos que com menos produção e horas de salão, mais uma passadinha na Riachuelo, elas estariam bem mais lindas.
Seja por fatores externos à classe feminina ou mesmo interna corporis, o fato é que quando Milena ligou pra mim e disse que nosso novo filho seria homem, o primeiro pensamento que me veio logo à cabeça foi:
- Ufa! Cinco a zero para ele no jogo da vida.

Maria Aparecida de Amaral Pereira Goes

Contexto

Final de dezembro de 2006. Com a iminente devolução de duas funcionárias lendárias do Fórum Eleitoral, além do total descaso e respeito do setor responsável por recursos humanos (chamam "gerência de pessoas", agora), eu resolvi fazer um pouco de justiça à dedicação prestada. sobretudo por Cida, uma das servidoras em vias de retornar para sua repartição de origem.

Texto...

Eu ainda era aquilo que chamo hoje de “menino amarelo”. Tinha passado num concurso para trabalhar em João Pessoa e fazia, no mesmo período, graduação em Campina Grande. Isso era um problema porque se “o concurso” me chamasse eu perderia a vaga, já que não perderia a graduação por nada no mundo.
Daí fui lá no Fórum Eleitoral, o único lugar que eu imaginava que tivesse alguém pra me dizer algo sobre aqueles prazos que me afligiam. Na chegada, passei por todas as etapas que alguém que não tem noção de como funciona a Justiça Eleitoral acaba passando, por procurar a informação no lugar errado. A fonte correta seria a Secretaria de Recursos Humanos, que fica na sede do Tribunal em João Pessoa. Mais precisamente na Coordenadoria de Pessoal (COPES). Portanto, eu cheguei todo errado, no lugar errado, procurando respostas que as pessoas não tinham e não podiam ter.
Nas primeiras tentativas de obter informação encontrei o óbvio: “aqui ninguém sabe de nada disso”. Por fim, alguém me recomendou que fosse lá em cima e falasse com Cida. “Lá em cima” eram os dois andares de escada do antigo Fórum e “Cida” era “Cida do Eleitoral” como ela gosta de ser chamada, ou Maria Aparecida de Amaral Pereira Goes, como a chamo até hoje.
Quase tudo se repetiu em relação às pessoas que tinha falado antes. Contei a mesma história, que queria saber quando ia ser chamado, para ver se dava tempo de terminar a graduação. A diferença é que Cida disse “pera aí que eu vou ligar para Ari...”, e começou com uma série de telefonemas que percorreu vários setores da SRH, perguntado e detalhando as informações com cada um dos interlocutores.
Dez minutos depois ela desligou e explicou tudo que eu precisava saber, quais eram as pessoas que eu poderia recorrer caso fosse chamado antes do que desejava, os telefones dos setores, as pessoas mais acessíveis, aquelas que devia evitar e, inclusive, como chegar no TRE em João Pessoa. Depois me apresentou ao pessoal do NATT, como o programador que tinha passado no concurso. Encerrou dizendo que qualquer dúvida ligasse ou aparecesse que ela veria o que podia em ajudar.
Eu nunca tinha visto aquela figura na vida. Ela jamais tinha me visto. E sem que eu fosse autoridade, magistrado ou ninguém do topo da cadeia alimentar, fui recebido com absurda atenção e iniciativa. Eu saí de lá me prometendo que se fosse chamado e me tornasse servidor público, eu seria daquele jeito, prestando meu serviço com aquele grau de empolgação.
Onze anos se passaram, e após retornar da Bahia vi que Cida continua atendendo as pessoas perdidas no Fórum Eleitoral com a mesmíssima presteza. Como sou certinho demais para esse país, não me tornei um servidor público exatamente igual a ela. Ao mesmo tempo sou testemunha de um grau de dedicação, abnegação e comprometimento com um órgão público que não conheço igual e, de longe, jamais serei capaz de oferecer ao Tribunal ou qualquer órgão da administração pública.
Nesses onze anos vi em vários momentos, sobretudo quando o Tribunal precisou interagir com o Fórum, que não foi muito fácil definir se ela era Cida do Eleitoral ou se o Eleitoral era de Cida. A sede não consegue mover uma palha, tomar uma decisão, realizar um evento, fazer uma visita ou levantar informação sem que Cida esteja como olhos e cérebro remotos, a 120 Km, permitindo que o TRE consiga chegar a Campina Grande.
A letra fria da lei agora determina (como o judiciário gosta) que Cida deixe de ser do Eleitoral. Com nostalgia, preciso registrar esse reconhecimento, esse devido agradecimento. Preciso fazer justiça, no sentido estrito da palavra, antes que o Eleitoral deixe de ser de Cida.
Em nome da instituição, Cida, muitíssimo obrigado.