Questões que me atormentam...

Tuesday, November 07, 2006

"O meu partido é um coração partido..."

Contexto:

Outubro de 2006. Recebi no tabalho uma grata visita. Foi inspiradora e me fez ir pra casa com aquele sentimento gostoso de esperança, que Bob Marley cantou e Gil traduziu: tudo, tudo vai dar pé.



Texto...

Acho que Cazuza já tinha AIDS quando escreveu esse verso. Ele é só o primeiro de uma seqüência de afirmações depressivas, negativas e desiludidas, que termina com um apelo meio desesperado: ideologia, eu quero uma pra viver! Cazuza era jovem demais para se desiludir tanto estando são.

Eu não. Não para os dois casos. Nem estou desiludido, nem tenho AIDS. Continuo empolgado, disposto e com aquela certeza dos deze6, 7, 8, 9 anos, que sou capaz mudar o mundo.

Nessa época de eleição, por exemplo, eu fico satisfeito em perceber que minha tese sobre a obrigatoriedade do voto procede. Por enquanto, ainda é importante o dever de votar, porque ele leva à população ter que prestar atenção na política partidária e, como efeito colateral, acabar se politizando socialmente, se importando com o todo além da sua calçada e compreendendo a importância que tem, por mais que durante os dois anos seguintes tudo e todos se esforcem para convencê-la de sua impotência.

É época em que, lá no interior da região mais atrasada do nosso país de terceiro mundo, as pessoas de repente se posicionam como as mais avançadas sociedades de hemisfério norte. Eu não visto essa cor porque é símbolo de tal corrente política da qual eu discordo. Eu não vou jogar cartas hoje, porque vou assistir ao debate entre os candidatos. Se na rua alguém está fazendo propaganda de bandeiras que são contra meus pensamentos políticos, eu não “deixo pra lá”, respondo, exponho minhas posições, debato, ensino e aprendo um pouco naquela troca de idéias. Se estou sabendo de alguma irregularidade, denuncio, vou ao Ministério Público, chamo a imprensa, espalho na Internet. Se alguém está envolvido em irregularidades, falcatruas, não perdôo, jogo duro com ele. Embora essa overdose de cidadania dure só uns meses, vai deixando “seqüelas”, que melhorarão a participação das pessoas mais simples no jogo da sociedade, de maneira que ludibriá-las se tornará cada vez uma tarefa mais complexa.

Foi nessa atmosfera eleitoral que reencontrei um colega de trabalho, que não via a uns sete anos. A lembrança que tinha de Seu Martins era de um homem de pouca comunicação, rude, jovem e como traço mais marcante uma força descomunal. Contava a todo mundo a proeza que ele realizou, levando sozinho uma geladeira por dois andares de escada, quando sentiu um ar de preguiça de seus colegas. Martins era simples assim, super na dele e um monstro pra trabalhar.

O que estava meio apagado na minha memória é que, nos intervalos de sua jornada,
Martins fazia uns exercícios da escola, sentando num beco, atrás do prédio, onde podia ter paz para raciocinar. Quando tinha dúvidas, se socorria com a turma do Fórum, que sempre dava força a ele, naquela jornada de supletivo de primeiro grau.

Estava meio esquecido também que Martins tinha uma auto-estima quilômetros acima da média. Como era gari, trabalhar lá no Fórum era para ele (e os demais vindos de outros órgãos) um grande negócio, já que o serviço não fazia nem cócegas perto das horas sob sol pelas ruas da cidade. Isso sugere que ele seguiria a mesma lógica sacana imposta aos chamados “requisitados”. Teria que engolir desaforos, porque a idéia atemorizadora de “ser devolvido” à sua repartição de origem significa um verdadeiro pesadelo. Poderia ser atemorizadora, mas não para ele. No primeiro desaforo desrespeitoso que recebeu, Martins “meteu a mão na mesa” e disse: me devolva que eu não estou aqui para isso não!

Semana passada, quando a cada dez minutos entrava um cabo eleitoral procurando a votação de tal candidato nas seções de tais cidades, entra na sala do NATT, trajando seu uniforme de gari, um sorridente Martins.

Falante, eloqüente, bem humorado e cheio de polissílabos no vocabulário, Seu Martins agora se chama Martins da Cachoeira, e com um par de CDs nas mãos pedia para que copiasse os dados da sua expressiva votação para deputado estadual, avisando e alfinetando logo, que “o gari já tem computador”.

Passado o quase susto, foi se construindo a agradabilíssima surpresa. Seu Martins me contou que é líder sindical, concluiu também o segundo grau, está na lista de chamada para o curso de Filosofia e não conseguiu os R$80,00 reais para se inscrever em direito, seu próximo projeto acadêmico. Ama o jornalismo, mas a sua atividade política já mostrou que seria preciso se vender antes de ter um microfone ou teclado à disposição pra trabalhar no ofício de sua paixão. Em vocabulário do próprio Martins, tem que puxar saco para ter espaço nessa área, e aí, deeeesde o tempo lá do Fórum, não é com ele.

Martins lê Maquiavel e muita sociologia. Recitou para nós a primeira página de O Príncipe e, com certo orgulho, provou ser bom aprendiz. Com apenas R$7,50, conseguiu propagar a sua mensagem de final de ano na mídia. Presenteou o governador com um livro e a dedicatória o fez proclamar o nome Martins em todos os veículos de comunicação, quando não teria como mandar aquelas mensagens natalinas, pagas, reservadas para políticos endinheirados, que tem o saco puxado por aqueles jornalistas que Martins não quis ser.

Ainda fomos agraciados com a narrativa de suas participações em debates, brilhantes, sempre trajado de gari, altivo e orgulhoso de ser concursado e não dever favor a nenhum padrinho. Debates com deputados (que delícia ver Martins falar “Vossa Excelência” com tanta trivialidade), empresários, políticos importantes, no âmbito de sua atividade sindical. Em cada uma das passagens, o gari (é assim que ele se denomina!) dava show, travava a verborragia cheia de pose e hipocrisia de quem não sabe o que é ser milagroso como ele. Também segundo o próprio, tem poderes mágicos, consegue fazer milagre e com freqüência mensal. Em uma rádio lhe perguntaram como os conhecimentos de gari poderiam lhe acudir numa administração de um estado. Martins trouxe a sua tese do milagre como resposta: se eu dou comida e moradia a três filhos, mulher, cachorro e um sagüim com o salário mínimo, imagine o que não faria com o que esse Estado arrecada. Assim como eu, tenho certeza que os restos mortais de Marx deram uma gostosa gargalhada naquela hora.

Cada um de seus mais de mil votos foi conquistado assim, no corpo-a-corpo como, bem humorado, descreveu o gari. “Posição não atesta capacidade intelectual!”. “É melhor votar num fodido que num bandido!”. “Diga onde você vai, que eu vou varrendo.... vou varrendo, vou varrendo...”

E varrendo foi Martins em sua trilha. Para lembrar a Cazuza, e a cada um de nós, que no país em que um torneiro mecânico, semi-analfabeto, retirante, feio e deficiente físico se tornou a mais expressiva personalidade política, ninguém pode se dar o direito de perder as esperanças.

De peito renovado, abro um sorriso e agradeço:

Salve Martins da Cachoeira, o gari.

Tolerância mil

Contexto:

Janeiro de 2006, conversando no TRE, lembrei dessa história que traz uma das características que mais admiro em Oliveiros. Aquela que será provavelmente a mais valiosa herança que ele vai me deixar: a sua amistosidade. Não tem desafetos, não odeia ninguém, não construiu inimigos e consegue conviver com gente de toda espécie. Simplesmente porque, como Marcelo, seria capaz de dar um odioso disco de Madona a um amigo, só porque ele gosta.





Texto...

Nesses dias de tão pouca paciência e tão muita afobação, em que “tolerância zero” virou até slogan engraçado, lembrei-me de um episódio marcante da adolescência, que recomendaria como um antídoto para o estado de espírito que a gente tem hoje.

Que Madona lance a luz sobre essa epidemia de intolerância...

Cursava a segunda série do segundo grau, hoje ensino médio. Na época (já) era militante fervoroso e os ideais comunistas eram construídos e debatidos, além da cozinha de casa, com professores e amigos de sala. Um amigo em especial trazia uma afinidade maior, talvez porque o cara tinha um perfil parecido com o meu, era filho de militante perseguido pela ditadura (ele no Chile, eu aqui mesmo) e quase nascera em cima de um Jipe, fugindo do estádio nacional, onde Pinochet fazia um sorteio mata-não-mata. Com esse amigo, além de política, eu debatia quase tudo, todas as formas de arte e, sobretudo, música.

Na mão dele vi o primeiro exemplar do antológico “Cabeça de Dinossauro”, dos Titãs. Conheci também nesses debates Ratos de Porão, Plebe Rude, Garotos Podres e outros espécimes undergroud da época, ora em nossos papos no colégio, ora em visitas mútuas. O cara já gostava de funk, sabendo dançar e tudo. Óbvio, numa versão absolutamente diferente do modelo atual, zero bunda de fora! Era um entrosamento que nascia na sala de aula, se expandia pelo corredor, nas festas em finais de semana, desembocando próximo à área, onde fazíamos uma dupla de ataque perigosa. Aliás, no esporte também tínhamos afinidades por sermos metidos a atletas, ele de handebol, eu de basquete.

Dentro de toda essa afinidade havia um ponto de ruptura, uma discordância praticamente insuperável, por ser uma diferença radical. Na verdade, já naqueles dias, não tínhamos a menor vergonha de sermos radicais em boa parte dos posicionamentos que tomávamos. Toda essa celeuma era causada por uma mulher (tinha que ser, né?). Não que a gente tivesse se apaixonado pela mesma. Não que alguma mentira intrigante tivesse sido plantada por uma garota para criar inimizade. Não, nada disso. Simplesmente eu a-do-ra-va (separado, como bicha gosta de falar) a cantora Madona! Eu me amarrava nos shows música + coreografia que ela fazia. Gostava como gosta todo mundo chegado a “cultura” pop. Gostava por nada. Porque era animado e me dava uma vontade boa de sair dançando, daquelas que hoje os tambores de maracatu me causam. Era uma música pobre, duma mulher que ora falava como uma virgem, ora convidava todo mundo para celebrar um feriado. Ou seja, música-vazia-superficial-de-gosto-pequeno-burguês-imposta-por-uma-coerção-imperialista-das-gravadoras-multinacionais. Imperdoável!

Eu nunca tocava no assunto, mas vez por outra alguém chegava e perguntava “viram o novo clipe de Madona?”. Vixe! Fechou o tempo. Eu me animava todo para comentar, meu amigo me olha com aquela cara de nojo que os baianos fazem antes de perguntar “você é viado, rapá?!”. E assim esse assunto ficou meio censurado por alguns anos.

Certo dia, como em todos os dias de prova, saímos mais cedo do colégio e subimos caminhando a ladeira rumo ao centro, para fazer hora até a saída do pessoal dos outros colégios, que a gente encontrava para paquerar e conversar besteira na praça. No caminho fizemos um dos programas prediletos, que era parar para comprar/olhar discos.

Garimpamos as bandas e sons que curtíamos, mostramos um monte de disco um ao outro, elogiando um, metendo o pau em outro, de forma que escolhemos um ou dois cada para comprar. Desde o primeiro momento, ele me sacaneava com o novo disco de Madona na mão, que custava uma grana, falando pra todo mundo ouvir que eu gostava daquilo. “E aí? Não vai gastar o dinheiro do mês nessa pérola não?!”. “Compra o disquinho da Madona, compra”. E eu, levando na boa, respondia já provocando que estava muito legal.

A gente foi para o caixa, pagou os discos, eu levando um e ele dois, saímos cada um com sua sacola, cruzando a rua em direção à praça.

Antes de chegar ao ponto da paquera, ele me parou no meio da praça, tirou da sacola o disco novo de Madona e disse: “Toma viado, vai ouvir tua porcaria”.

Eu primeiro fiquei sem ação. Depois dei um puta abraço no sacana que naquela hora me passou uma das mais preciosas lições que acumulei na vida.

Embora eu saiba “decó” desde aquele dia, só recentemente me restou aprender de verdade: a gente não deve associar um sentimento a uma opinião. A gente não precisa odiar o cara porque discorda dele, nem vice-versa também. O fato de pensar/agir diferente não deve descredenciar ninguém ao nosso convívio. Essa intolerância, além de ser raiz de desgraças em toda parte do mundo, torna o nosso ciclo de convívio pobre, linear, só de gente que pensa e age igualzinho, que pouco acrescentará à nossa visão de mundo.

Naquela manhã, em frente à Lobras, Marcelo me presenteou de maneira muito singela e surpreendente com essa caríssima lição, em forma de um disco vermelho, da cantora Madona.

Meninos, eu vi.

Contexto:

Oito de maio de 2005. No Amigão, transmitido ao vivo para todo país, jogaram Treze e Fluminense pelas quartas-de-final da Copa do Brasil. Um jogo histórico, inesquecível, daqueles que se cometará por década, como o tal time do Campinense, o time do Zé Pinheiro, hexa-campeão paraibano. Eu tive a honra de estar lá, para viver aquelas duas horas incríveis e sentir a alegria mais intensa que experimentei em minha vida. Para contar uma história bem contada aos meus netos, resolvi registrar alguns detalhes.



Texto...

Era uma noite fria, como são frias todas as noites entre abril e setembro em Campina Grande. Porém, era só no ar que pairava a frieza daquela noite, porque como em todas as ocasiões em que a empolgação é requisitada aos campinenses, a cidade se tornou um caldeirão, borbulhando a vários graus acima de cem.

Era o Treze na Copa do Brasil. Era o Treze contra o Fluminense. O Treze ao vivo em mais de 60 milhões de salas brasileiras. Era mais um dia daqueles que eventualmente enchem o peito da Borborema, tornando muito gostoso ter nascido nessa cidade. Era mais um dos momentinhos em que os amigos Brasil a fora ligam e escrevem para exclamar na maior autivez: viu Campina?!

A história já estava feita. Jamais um time da Paraíba chegara tão longe em campeonato nacional. Jamais tínhamos feito tão bonito, figurando tanto tempo nas reportagens esportivas, nos comentários de jornalistas dos gigantes daquele Brasil que aparece e manda nos meios de comunicação. Lembro-me que antes mesmo de começar essa fase da competição já ter dito que tudo queria é que o Treze não saísse de forma vexatória, que não nos expusesse ao ridículo de uma goleada daquelas em que os jogadores já nem comemoram os últimos gols. Só queria que a gente não tivesse que recorrer àqueles argumentos do tipo salários, tradição do clube, condições de treinamento, alimentação, etc para concluir que de qualquer forma tinha sido uma trajetória histórica. Então fui ao campo sem ambição, sem maiores expectativas, de certa forma justamente para poder escrever essas linhas, para poder contar aos futuros paraibanos como Antônio[1] que naquela noite eu estava lá, não me contaram, não fui espectador, fui a rigor um dos milhares de atores que viveram essa história.

Com a derrota simples na primeira partida, o objetivo de não fazer feio já estava praticamente cumprido. Mas diferente de mim, talvez porque só recentemente fui repatriado, quem nasce em Campina Grande tem espírito Marinês, pensa e deseja tudo grande. Com ambições enormemente maiores que as minhas, a cidade era um pandemônio comparável com a abertura de São João, sexta-feira de Micarande, domingo de campanha eleitoral ou qualquer outro dia em que haja um centímetro de oportunidade para se transformar em uma grande festa. Meu pai saiu só para ver a movimentação e quase não consegue voltar. Parte porque as ruas estavam lotadas e intransitáveis, parte porque não nega ser daqui e se empolgou com a euforia, sem querer mais largá-la.

Tinha gente dizendo que vencia, tinha gente dizendo que seria fácil, tinha gente – os mais campinenses de todos - com placa “Galo Rumo a Tóquio”. Veio gente das cidades vizinhas, de João Pessoa, até raposeiro para torcer pelo Galo, mesmo que sob o argumento sacana de que, assim como o Treze, era acima de tudo Campinense.

O estádio estava lotado, completamente pintado de preto e branco. A visão que obtive subindo as escadarias de acesso à arquibancada era, pelo menos, tão emocionante quanto à dos jogadores subindo o túnel. O som numa freqüência que só as multidões conseguem produzir embalavam a maior massa de trezeanos jamais reunida. Um sorriso incontrolável de quem ver o Chiclete com Banana passar me invadiu o rosto e agradeci por estar ali, vivendo aquele fusué. O cenário estava perfeito para o espetáculo que estava por vir, que será narrado repetidamente, por anos e anos, do São José ao Calçadão.

O jogo foi um jogo de futebol como o outro qualquer, que passado um primeiro tempo ruim, a equipe da casa pressionou, cercou e encurralou o visitante. Ocorre que de normal nesse caso isso não tinha nada. Para mim não era normal porque quem estava massacrando no segundo tempo era o Treze. Sim, o Treze(!), aquele que eu via treinar lá no PV[2]. Quem estava encurralado era o Fluminense, que vinha de sete vitórias seguidas, campeão carioca, líder do Brasileiro, tendo jogos transmitidos na TV dia sim, dia também. Para o resto da torcida também não estava nada normal. O Treze ainda não tinha feito um gol naquele timinho? Da Silva perder dois gols daqueles no mesmo jogo? O banderinha daqui, rapaz, anular o gol do Treze?! Tava todo mundo indignado, gente passando mal, Nadja[3] chorando de ódio do “time véi bosta que não faz nenhum gol”. Quando perto do fim foi perdido um daqueles gols impossíveis de se perder (embora todos os times tenham perdido contra o Treze em defesas que a torcida achava normal nosso goleiro fazer), o desespero e indignação se generalizaram.

Como o Fluminense tinha um a menos, embora tenha sofrido duas expulsões, já que o Treze cumpria a tradição de um jogador expulso por jogo, ninguém aceitava aquele placar de 0 X 0. Principalmente porque o Flu, o Tricolor das Laranjeiras, era cada vez mais fluzinho. Simulava contusão, criava confusão e botava para fora todo o repertório ironicamente inventado para times pequenos como o Galo apelar em decisões com grandões como o Flu. Nesse momento o juiz, do ápice da sua imparcialidade, deu apenas três minutos de acréscimo onde cabiam pelo menos seis. Mais desespero ainda. Aquilo completou um leque de atitudes tendenciosas adotadas desde o primeiro apito, levando à loucura completa os três ou quatro últimos trezeanos que ainda estavam em seu juízo perfeito àquela altura.

Enquanto metade da torcida já desistia, porque o relógio mostrava que o juiz encerraria o jogo a qualquer momento, a outra metade, da qual eu fazia parte, estava extremante animada, já que o jogo mostrava que o gol tava para vir a qualquer segundo. E foi assim que ele veio.

Em um lance em que eu vi (e havia) muito mais impedimento que em outro já anulado minutos atrás, a bola ficou pulando, pulando na área, até que, com quase displicência, o jogador trezeano desferiu o chute, fazendo a rede balançar, em uma cena que jamais esquecerei e que para sempre agradecerei estar lá para testemunhar. Por dois segundos, devido ao trauma de minutos atrás, hesitei procurando e temendo os sintomas de anulação, como juiz parado, jogador reclamando, torcida calando. Não vieram! E como foi gostoso, enlouquecedor e intenso que eles não tenham vindo.

Junto comigo explodiu um estádio lotado. Junto comigo enlouqueceu uma multidão até então revoltada, angustiada, desanimada ou conformada. Não havia fôlego bastante para que o grito botasse para fora o que se sentia ali. Não havia pulo alto o bastante para extravasar aquela emoção. Precisaria mais dez anos de meio de rua para eu ter palavrões suficientes para xingar naquela hora. Seria preciso abraçar toda arquibancada-sombra para me sentir suficientemente confraternizado naquele momento. Era definitivamente a mais intensa alegria que jamais experimentei no esporte. Pela rompante que chegou, talvez a mais intensa alegria que conheci na vida.

Como é lindo um estádio feliz. Como é linda aquela multidão formada por homem xingando, mulher descabelando, criança chacoalhando no braço do pai, e todo mundo envolvido na “ofegante epidemia”, na mais pura felicidade.

Era o futebol mostrando a sua magia, fazendo o pequeno bater no grande, cada pobre dali mais feliz que todos os ricos do mundo. Levando estranhos a se abraçarem como irmãos, fazendo Campina, tão diminuta como a própria palavra já diz, se tornar enorme, pois “Grande” era pouco demais para aquele gol.

O que se segue é o que a história resumirá em “o Treze perdeu nos pênaltis”. Claro que esse resumo será injusto por negligenciar as defesas do goleiro trezeano nas cobranças, a competência dos nossos batedores, levando a série até às cobranças de goleiro. Será injusto por não lembrar que quem perdeu foi exatamente quem podia, porque Wagner Diniz e Beto (escrevo os nomes para registro) foram grandes astros dessa campanha memorável. Injusto também por não lembrar que o erro cometido na cobrança capital do trezeano foi aplaudido pela torcida, num reconhecimento velado à grandeza daquela noite.

O resumo da história talvez também negligencie o fato de que, embora consumada a derrota, a torcida cantava com propriedade o sentimento que enchia meu coração até o momento em que escrevia esta suposta crônica :

“Eu

sou trezeano,

com muito orgulho

e muito amor-ôôôô”



[1] Meu filho, recém nascido

[2] PV = Presidente Vargas, estádio do Treze onde seus treinamentos são realizados

[3] Minha irmã mais nova

Sejamos amenos

Contexto :


Maio de 2005. De tanto ser chamado de “radical”, resolvi registrar essas idéias e sentimentos que, réu confesso, assumo esse rótulo com tranqüilidade e alívio. Mais que isso, recomendo-o fortemente, para quem estiver disposto a ser muito mais que um dente na engrenagem, mais um tijolo no muro.



Texto...

Vamos viver na superfície. Fazer, pensar e sentir tudo que se possa ser capaz, desde que não se adentre a um palmo de profundidade. Vamos assistir a filmes bobinhos, comédias românticas, "Uma Linda Mulher" e "Notting Hill", ah que delícia... Vamos manter conversas no repertório Leão Lobo, falar de coisas que durem segundos, que não impliquem em nada, que não precisem de qualquer esforço de raciocínio ou memória. São inúmeros os assuntos que podemos manter nessa linha, são quase todos temas das conversas que temos tido ultimamente, tanto da porta para dentro, como para fora de casa.

Não me venha com papo-cabeça, porque papo já ta dizendo, não é para usar a cabeça, é só para falar, falar, falar. Ninguém vai resolver os problemas do país numa mesa de bar, ninguém vai mudar o mundo no terraço de casa, então para que conversar essas coisas complicadas, macro-economia, Lula e Chavez, corrupção, homossexualidade, relação pai-filho, eleição na Câmara e votação no Congresso? Para que abrir o debate sobre as coisas que chamamos de normal, discutir se são mesmo normais, quem determinou que se tornassem normal e quem fará deixá-las de ser ? Para que isso? Deixar de rir com as piadas do Casseta, as fofocas das novelas, as polêmicas do momento, para se jogar numa prosa que vai deixar todo mundo de testa enrrugada, sem certeza se a próxima frase que falará está correta, ou mesmo se terá uma próxima frase para falar. Para que correr o risco de sair da mesa encasquetado com a conversa, intrigado com algumas coisas que ouviu, ruminando até mais tarde no travesseiro? Afinal a idéia era só se divertir, e não ficar encasquetado com aquele papo de maluco até mais tarde, se virando no travesseiro.

Sem essa de filme profundo, confuso, escuro, lento e sobre gente como a gente. Quero daqueles que "quando nascemos fomos programados" para gostar. Muita explosão, gente linda, super-homens e, principalmente, final feliz, afinal quem gosta de gente feia e tristeza? Quero filme que envolva muito, mas muito figurante mesmo. Se tiver na base de milhares é o ideal. Agora então que a técnica copia-cola serve para aumentar os elencos, quero ver batalha de 50 mil pessoas, desfiles de 100 mil e por aí vai. É fundamental um herói, que se for do presente deve ser descolado, marombado e monosilábico, se for do passado, grosserão e destemido. Se tiver um enredo a ser compreendido, que seja narrado e destrinchado nos diálogos dos personagens. Não deixem nada para eu deduzir, porque não se vai ao cinema para pensar, não é mesmo? Quero filmes que, falando sobre eles, sempre me referirei àquela imagem (ou seqüência), nunca àquele diálogo. O começo deve ser lento e explicativo. O meio tem que ser um pouco instável, com duas ou três possibilidades de desfecho, desde que a mais paz-e-amor delas seja concretizada, porque está na bíblia da telona: "no final dá tudo certo, se não der certo é porque não é o final ainda".

Por favor, não traga música que me obrigue a prestar atenção na letra, porque música é para se ouvir, não para entender. Tem que ser animada, daquelas que "bombam na balada". Tem que ser para consumir em altíssimo volume, de preferência na mala aberta de um carro que encostou no bar de ré e mostrou potência, com seu repertório perfeito para uma festa no meu AP, estrelando Calipso e Psirico. Música tem a função social de animar festa, quando a gente escuta em casa é porque quer sentir um gostinho daquela animação que só as festas têm. Aquelas com gente falando baixinho, com dois ou três instrumentos, chegando ao absurdo de se apresentar em show com menos de 25 pessoas no palco, é para quem quer entrar em depressão. Se quiser curtir música, curtindo mesmo, tem que do repertório disponível nos camelôs, com aquelas capas desbotadas.

Livros, nem pensar. Nem Paulo Coelho, ou o último guia de como fazer qualquer coisa em tantos dias. Livro basta os da escola. Podem até ser bonitinho na estante, mas no meu colo, por horas, páginas e páginas sem uma imagem, é o veneno perfeito para quem quer morrer de tédio.

Teatro, tenha paciência! Se não for comédia, é coisa de viado. Quando não, é viado fazendo comédia.

Pois é. Embora ninguém tenha o despudor para falar assim, na verdade, lá no fundo mesmo, está cada vez mais difícil encontrar quem não se enquadre nesses perfis, condenando a morte a inteligência e uma inesgotável capacidade de nos emocionar que carregamos. Mas que mal tem isso? Se o importante da vida é ser feliz, não interessa se será ouvindo Calipso ou Cordel do Fogo Encantado?

Na verdade diria que tem todo mal do mundo, pelo desperdício diário que poderá fazer-nos no máximo passar pela vida contentes, em vez de vivê-la na plenitude, extrema e radicalmente felizes.

Imagine um cego assistindo àquela antológica cena dos alunos sobre as carteiras, em Sociedade dos Poetas Mortos. Imagine um surdo no Maracanã lotado, com 100 mil pessoas cantando o hino do clube campeão. Imagine um daltônico diante dos quadros de Van Ghog, ou um nariz congestionado aspirando um saco de pão quentinho. Perceba que preciosas oportunidades de se ter a vida em overdose, na dose que ela sempre é capaz de se oferecer, que se estaria jogando fora. Imagine um dos quinze beijos que um “pegador” conseguiu numa tarde de carnaval e compare com o beijo de Jack Dawson e Rose, naquele carro de vidro embassado, no Titanic. Compare a sua alegria e a de Heloisa Helena em ver um homem do povo eleito presidente. Quem curte mais a música, você que tem um AP onde poderia haver uma festa, ou o menino do mangue, ouvindo Chico Science falando das paredes do seu quintal?

Talvez assim a gente se disponha a correr o risco de se aprofundar, de "ser radical" uma vez por outra, respirar fundo e dar várias pernadas e braçadas rumo ao fundo, sem sentir saudades da tranqüilidade da superfície. O risco do mergulho é um preço muito pequeno a se pagar para ver os meninos de pé nas carteiras, ouvir um Maracanã lotado, cheirar pão quentinho (hummmm), ver cada detalhe de Van Gogh, amar como Jack e Rose e, ouvindo Chico Science, chorar com Heloisa Helena indignada.

Para isso é preciso que vejamos também filme europeu, latino-americano, iraniano, seja lá de onde for, para que pelo menos corramos o risco de entrarmos no cinema uma pessoa X e sairmos Y, mais informada, mais sensível, mais compreensiva, mais inteligente, mais qualquer coisas, desde que não fiquemos os mesmos (ou menos) que entramos.

É preciso de vez em quando, de preferência mais em quando que de vez, ouvir música de gente que quer, antes de ficar milionário e cantar no Faustão, fazer música. Ouvir gente do bairro, da sua cidade, que resolveu botar um violão nas costas e viver de música, falando das coisas que tornam, ou pelo menos deveriam tornar, o ser humano uma espécie superior, especial.

Leiamos. Qualquer coisa, seja lá o que for, de out-door a romance. Mas que tragamos para o cotidiano esse hábito enriquecedor e libertador. Segundo Milton, um vaqueiro que conheci no interior do interior, quem lê pode domar o mundo.

É preciso que você vá ao teatro e, por favor, me chame.

Vamos falar qualquer dia sobre coisas intrigantes, que não tenhamos respostas, nem clichês prontos para cada frase. Aqueles papos do tipo que a gente suspirar e conclui: puts! Nunca tinha pensado sobre isso, sabia?

Vamos viver na plenitude, explorar nossas potencialidades, usar pelo menos 10% dos 10% que dispomos da nossa cabeça animal. Vamos chorar, gargalhar, nos indignar, nos aprofundar em todas as emoções e idéias que estejam ao nosso alcance. Não temamos o risco de ser o chato da roda, de ficar deslocado nela, porque do jeito que ela anda, tão vazia, tão pouquinha, vivendo um dia atrás do outro, tudo igual, igual, igual... faz muito mais medo conseguir se misturar facilmente.

Comecemos a quebrar o paradigma dominante, em que música, TV, cinema, teatro, etc são meros meios de entretenimento, pura diversão, veja-ria-esqueça, para que não nos mantenhamos como um rebanho divertidamente entretido, sorridente, enquanto a vida, aquela intensa, que remete a sangue pulsando na veia, vai passando, passando...

Morri.

Contexto :


Maio de 2005. De tanto ser chamado de “radical”, resolvi registrar essas idéias e sentimentos que, réu confesso, assumo esse rótulo com tranqüilidade e alívio. Mais que isso, recomendo-o fortemente, para quem estiver disposto a ser muito mais que um dente na engrenagem, mais um tijolo no muro.



Texto...

Vamos viver na superfície. Fazer, pensar e sentir tudo que se possa ser capaz, desde que não se adentre a um palmo de profundidade. Vamos assistir a filmes bobinhos, comédias românticas, "Uma Linda Mulher" e "Notting Hill", ah que delícia... Vamos manter conversas no repertório Leão Lobo, falar de coisas que durem segundos, que não impliquem em nada, que não precisem de qualquer esforço de raciocínio ou memória. São inúmeros os assuntos que podemos manter nessa linha, são quase todos temas das conversas que temos tido ultimamente, tanto da porta para dentro, como para fora de casa.

Não me venha com papo-cabeça, porque papo já ta dizendo, não é para usar a cabeça, é só para falar, falar, falar. Ninguém vai resolver os problemas do país numa mesa de bar, ninguém vai mudar o mundo no terraço de casa, então para que conversar essas coisas complicadas, macro-economia, Lula e Chavez, corrupção, homossexualidade, relação pai-filho, eleição na Câmara e votação no Congresso? Para que abrir o debate sobre as coisas que chamamos de normal, discutir se são mesmo normais, quem determinou que se tornassem normal e quem fará deixá-las de ser ? Para que isso? Deixar de rir com as piadas do Casseta, as fofocas das novelas, as polêmicas do momento, para se jogar numa prosa que vai deixar todo mundo de testa enrrugada, sem certeza se a próxima frase que falará está correta, ou mesmo se terá uma próxima frase para falar. Para que correr o risco de sair da mesa encasquetado com a conversa, intrigado com algumas coisas que ouviu, ruminando até mais tarde no travesseiro? Afinal a idéia era só se divertir, e não ficar encasquetado com aquele papo de maluco até mais tarde, se virando no travesseiro.

Sem essa de filme profundo, confuso, escuro, lento e sobre gente como a gente. Quero daqueles que "quando nascemos fomos programados" para gostar. Muita explosão, gente linda, super-homens e, principalmente, final feliz, afinal quem gosta de gente feia e tristeza? Quero filme que envolva muito, mas muito figurante mesmo. Se tiver na base de milhares é o ideal. Agora então que a técnica copia-cola serve para aumentar os elencos, quero ver batalha de 50 mil pessoas, desfiles de 100 mil e por aí vai. É fundamental um herói, que se for do presente deve ser descolado, marombado e monosilábico, se for do passado, grosserão e destemido. Se tiver um enredo a ser compreendido, que seja narrado e destrinchado nos diálogos dos personagens. Não deixem nada para eu deduzir, porque não se vai ao cinema para pensar, não é mesmo? Quero filmes que, falando sobre eles, sempre me referirei àquela imagem (ou seqüência), nunca àquele diálogo. O começo deve ser lento e explicativo. O meio tem que ser um pouco instável, com duas ou três possibilidades de desfecho, desde que a mais paz-e-amor delas seja concretizada, porque está na bíblia da telona: "no final dá tudo certo, se não der certo é porque não é o final ainda".

Por favor, não traga música que me obrigue a prestar atenção na letra, porque música é para se ouvir, não para entender. Tem que ser animada, daquelas que "bombam na balada". Tem que ser para consumir em altíssimo volume, de preferência na mala aberta de um carro que encostou no bar de ré e mostrou potência, com seu repertório perfeito para uma festa no meu AP, estrelando Calipso e Psirico. Música tem a função social de animar festa, quando a gente escuta em casa é porque quer sentir um gostinho daquela animação que só as festas têm. Aquelas com gente falando baixinho, com dois ou três instrumentos, chegando ao absurdo de se apresentar em show com menos de 25 pessoas no palco, é para quem quer entrar em depressão. Se quiser curtir música, curtindo mesmo, tem que do repertório disponível nos camelôs, com aquelas capas desbotadas.

Livros, nem pensar. Nem Paulo Coelho, ou o último guia de como fazer qualquer coisa em tantos dias. Livro basta os da escola. Podem até ser bonitinho na estante, mas no meu colo, por horas, páginas e páginas sem uma imagem, é o veneno perfeito para quem quer morrer de tédio.

Teatro, tenha paciência! Se não for comédia, é coisa de viado. Quando não, é viado fazendo comédia.

Pois é. Embora ninguém tenha o despudor para falar assim, na verdade, lá no fundo mesmo, está cada vez mais difícil encontrar quem não se enquadre nesses perfis, condenando a morte a inteligência e uma inesgotável capacidade de nos emocionar que carregamos. Mas que mal tem isso? Se o importante da vida é ser feliz, não interessa se será ouvindo Calipso ou Cordel do Fogo Encantado?

Na verdade diria que tem todo mal do mundo, pelo desperdício diário que poderá fazer-nos no máximo passar pela vida contentes, em vez de vivê-la na plenitude, extrema e radicalmente felizes.

Imagine um cego assistindo àquela antológica cena dos alunos sobre as carteiras, em Sociedade dos Poetas Mortos. Imagine um surdo no Maracanã lotado, com 100 mil pessoas cantando o hino do clube campeão. Imagine um daltônico diante dos quadros de Van Ghog, ou um nariz congestionado aspirando um saco de pão quentinho. Perceba que preciosas oportunidades de se ter a vida em overdose, na dose que ela sempre é capaz de se oferecer, que se estaria jogando fora. Imagine um dos quinze beijos que um “pegador” conseguiu numa tarde de carnaval e compare com o beijo de Jack Dawson e Rose, naquele carro de vidro embassado, no Titanic. Compare a sua alegria e a de Heloisa Helena em ver um homem do povo eleito presidente. Quem curte mais a música, você que tem um AP onde poderia haver uma festa, ou o menino do mangue, ouvindo Chico Science falando das paredes do seu quintal?

Talvez assim a gente se disponha a correr o risco de se aprofundar, de "ser radical" uma vez por outra, respirar fundo e dar várias pernadas e braçadas rumo ao fundo, sem sentir saudades da tranqüilidade da superfície. O risco do mergulho é um preço muito pequeno a se pagar para ver os meninos de pé nas carteiras, ouvir um Maracanã lotado, cheirar pão quentinho (hummmm), ver cada detalhe de Van Gogh, amar como Jack e Rose e, ouvindo Chico Science, chorar com Heloisa Helena indignada.

Para isso é preciso que vejamos também filme europeu, latino-americano, iraniano, seja lá de onde for, para que pelo menos corramos o risco de entrarmos no cinema uma pessoa X e sairmos Y, mais informada, mais sensível, mais compreensiva, mais inteligente, mais qualquer coisas, desde que não fiquemos os mesmos (ou menos) que entramos.

É preciso de vez em quando, de preferência mais em quando que de vez, ouvir música de gente que quer, antes de ficar milionário e cantar no Faustão, fazer música. Ouvir gente do bairro, da sua cidade, que resolveu botar um violão nas costas e viver de música, falando das coisas que tornam, ou pelo menos deveriam tornar, o ser humano uma espécie superior, especial.

Leiamos. Qualquer coisa, seja lá o que for, de out-door a romance. Mas que tragamos para o cotidiano esse hábito enriquecedor e libertador. Segundo Milton, um vaqueiro que conheci no interior do interior, quem lê pode domar o mundo.

É preciso que você vá ao teatro e, por favor, me chame.

Vamos falar qualquer dia sobre coisas intrigantes, que não tenhamos respostas, nem clichês prontos para cada frase. Aqueles papos do tipo que a gente suspirar e conclui: puts! Nunca tinha pensado sobre isso, sabia?

Vamos viver na plenitude, explorar nossas potencialidades, usar pelo menos 10% dos 10% que dispomos da nossa cabeça animal. Vamos chorar, gargalhar, nos indignar, nos aprofundar em todas as emoções e idéias que estejam ao nosso alcance. Não temamos o risco de ser o chato da roda, de ficar deslocado nela, porque do jeito que ela anda, tão vazia, tão pouquinha, vivendo um dia atrás do outro, tudo igual, igual, igual... faz muito mais medo conseguir se misturar facilmente.

Comecemos a quebrar o paradigma dominante, em que música, TV, cinema, teatro, etc são meros meios de entretenimento, pura diversão, veja-ria-esqueça, para que não nos mantenhamos como um rebanho divertidamente entretido, sorridente, enquanto a vida, aquela intensa, que remete a sangue pulsando na veia, vai passando, passando...

Morri.

Romper ou corromper

Contexto:

Julho de 2005. Atento à “crise” política que está em toda tv-rádio-jornal-Internet, resolvi registrar a minha impressão, minha forma de compreender essa aparente avalanche que ferve no país.




Texto....

Quando o cenário político ofereceu todas as variáveis favoráveis à chegada do PT ao poder nacional, dando de fato a sensação que Duda Mendonça brilhantemente traduziu em “Agora é Lula”, deu-se a falsa impressão que chegava a hora da virada.

De um lado o governo FHC terminava melancolicamente, ostentando praticamente como única façanha a já esgarçada alegria de “o pobre agora está comendo mais frango”, a mesma que o trouxera ao Planalto, longínquos oito anos antes, a reboque do Plano Real. De amarguras tinha recordes de desemprego, inflação projetada de dezoito por cento ao ano, as privatizações frustrando as expectativas de melhores serviços e preços, uma estrutura estatal desmanchada, além de mais uma dezenas de outras.

As outras forças de grande musculatura política, PFL e PMDB, não engoliam a antipatia velada do candidato oficial, imposto goela a baixo por FHC, e estavam por isso uma afogada em escândalos de grampo e painel do Senado, a outra pronta para ir com Lula assim que fosse chamada.

O único adversário possível de bater o tetra-candidato Lula era a sua própria candidatura, se construída em parâmetros fáceis demais de ser batidos, ou repetisse estereótipos já derrotados nas vezes anteriores. Esse perigo foi igualmente afastado com o nascimento do “Lulinha paz e amor”, em cenário cor-de-rosa em vez de vermelho, que abriu as portas da classe média preconceituosa, limpando o caminho rumo a sonhada rampa.

Quando a euforia crescia e a frase “agora é Lula” já soava “puts! Parece que agora é Lula mesmo!”, um fato muito sério passou discreto pelos olhos e corações empolgados daqueles dias. Diante de uma tremida do mercado, todos os candidatos, inclusive o operário, foram às pressas ao Planalto assinar uma “Carta aos Brasileiros”, que de “aos brasileiros” só tinha o título, avisando às forças econômicas que ninguém mexeria naquele joguinho animado de enriquecer especulador, há anos jogado por aqui.

Outros fatos igualmente sintomáticos desfilavam na frente de olhos cegos de alegria e expectativas. O candidato à vice era um megaindustrial do PL, formando fileiras com a turma do PTB de Roberto Jefersson, que embora tenha fama nacional recente, é uma das raposas mais antigas do parlamento, além do PP, honrosamente habitado por Dorneles, Delfin, Maluff & Cia LTDA, e o PL da Igreja Universal. Na base de “o que vale é voto na urna”, sempre mais oportunista que Dadá Maravilha, ACM e sua turma também eram bem vindos na reta final.

Na verdade não era exatamente empolgação que cegava aqueles olhos. Boa parte deles era cega simplesmente porque habitava aquela faixa de discernimento de quem se emociona com Globo Repórter e se diverte com Faustão. A outra parte, mais perspicaz, apostava que todo aquele capital político, acumulado pela comoção nacional que levava Lula ao governo, seria gasto metade em um “chute na bunda” do relicário que o rodeava, outra metade numa trombada de frente com as lendárias “forças ocultas” que dominam os destinos nem tanto democráticos do hemisfério sul. Esta segunda metade sabia, como bem definiu Frei Betto, que Lula chegava ao governo, mas não chegava ao poder.

Em primeiro de janeiro de 2003 este país era só expectativa. A turma Globo Repórter-Faustão esperava salário mínimo de R$500,00 a partir de maio. As velhas raposas e os interesses por elas representados esperavam que Lula cumprisse à risca a “Carta aos Brasileiros”, deixando tudo como estava e sempre esteve, inclusive a confortável proximidade delas com o poder. O pessoal de mais discernimento aguardava de bandeira na mão e carro de som ligado a hora em que o presidente democraticamente eleito meteria a mão na mesa e gritaria que “esse país agora só tem um dono: seu povo!”.

Ignorando Bill Cosby (“eu não sei o segredo do sucesso, mas o do fracasso é querer agradar a todo mundo”), o caminho escolhido pelo Governo Lula foi o fio da navalha, o equilíbrio sobre uma linha tênue que desenha uma fronteira caótica, buscando inaugurar uma interseção quase impensável entre o conjunto de expectativas e interesses, provavelmente excludentes, que haviam se instalado. O objetivo estratégico parecia ser a transição lenta para um modelo político-econômico mais autônimo, mais nacionalista e justo. Seria um tratamento homeopático, de forma que no final de oito ou doze anos, em um governo seguinte, mais à esquerda, com o mesmo apoio popular, se tivesse condições para virar a mesa tão boas quanto Lula teve para chegar a Brasília. O desafio era a habilidade para manusear o conjunto de variáveis conflitantes que se apresentavam.

Do lado econômico essa receita parece ter sido mais feliz. O equilíbrio das contas públicas à base de superávit primário gigante, arrecadação voraz e exporta-tudo, foi mantido em um ritmo de crescimento que chegou a alegrar. Pelo caminho, ficaram algumas baixas sérias, mas administráveis, como a perda dos fundadores do PSOL. Um morde-sopra com Europa e EUA tem dado bons avanços nas relações exteriores e comerciais, registrando talvez a ala deste governo mais capaz de agradar a todas as expectativas. Enquanto na economia a tentativa de decepcionar um pouquinho e corresponder bastante a todos seguiu com considerável sucesso, na política o cenário é mais viciado e, consequentemente, mais difícil.

Das variáveis que davam o governo ao PT mas não o poder, o modelo político é o menos disfarçado. O partido do governo chega com apenas 92 dos 257 deputados necessários para se aprovar um mero projeto de lei, ou dos 345 para mudar uma linha da constituição, sendo o cenário no Senado ainda mais hostil. Como aprovar mudanças então? Como governar? Apelar para o civismo dos representantes do povo, lembrando-os que os interesses do país têm que estar acima dos individuais e coorporativos? Na Suíça, talvez. No Brasil daqui a 200 anos, espero eu. Hoje, ou se lançaria o povo na rua, nos modelos Venezuela-Chaves e Argentina-Kirchner, ou se abriria o livro de nomeações, reunindo os abutres por cargos e, num jogo quase “quer quanto pelo seu voto?”, se trocaria cargo por apoio. Esta foi a opção do governo Lula. Este foi, talvez, seu pecado original.

O expediente secular do “toma-lá-da-cá” é indomável. A história mostra que a sede de quem pede não tem limite e empurrará para longe os limites éticos de quem precisa dar. Rapidamente cargos não saciam esta sede de quem pede, levando quem dá logo para as mensalidades. Com o mine-parlamentarismo aparentemente implantado no executivo, Lula se mostrava desenvolto no papel de chefe de Estado, enquanto que Dirceu e sua turma se viciavam e se comprometiam no modelo de governo que escolheram construir. É exatamente neste comprometimento que se origina toda a fragilidade imposta à estratégia inicialmente traçada (agradar a todos enquanto se prepara para virar). É precisamente por aí que ela começa a ruir e precisará ser substituída, ou pelo menos se reinventar.

É preciso se perceber que inflação de primeiro mundo, polícia federal na rua, liderança internacional exercida por Lula, vitórias na OMC, pregões eletrônicos fazendo licitações de verdade, reforma agrária produtiva, respeito aos movimentos sociais, reestruturação do ensino público, software livre na veia, água para o norte do Nordeste, autonomia no petróleo e um carisma ainda imbatível do Presidente-candidato são algumas das realidades que, além contrariar interesses de toda a elite política e econômica, desenham para 2006 um cenário praticamente irreversível de sucesso para o PT-Governo Lula. Diante disto o que resta ao interesses contrariados? O que resta àqueles que ficaram de fora do trem de adesão, ou vêem nos novos rumos os seus interesses seculares em apuros?

Resta o “golpe”. A rasteira.

Não o golpe denunciado pela cúpula encalacrada do PT como forma de defesa, supondo uma teoria da conspiração mais vulgar para justificar o escarcéu em que aparentemente está metida. O golpe que agora é dado é um ippon, uma virada que reverte a situação de absurda vantagem que apresenta o oponente, de forma que num movimento repentino, como uma entrevista à Folha de São Paulo, possa jogá-lo na lona, vencido e de preferência sem capacidade ou possibilidade de reação. Assim como no judô, o ponto ideal para se aplicar o ippon é aquele em que o adversário apresenta uma fragilidade fatal. Fatal porque é facilmente atacada e, sobretudo, porque nesta fragilidade se apóia toda a sua estrutura. No caso do governo do PT um congresso voraz no lema “dá-cá”, ao ponto de eleger o medonho Severino, parece ter criado esta fragilidade, conduzindo a cúpula do partido a um lamaçal que tornou o governo da esperança vulnerável ao golpe capital das elites, outrora torcedoras do medo.

É neste ponto que o ataque está sendo feito. Com toda força e agilidade que interesses representados por Veja-Folha de São Paulo – Estadão – Globo – ACM – Bonhausen - PSDB são capazes de despejar. Neste momento toda a estrutura petista está a caminho da lona. Por enquanto, só a figura do presidente é poupada. Nitidamente para não virar bagunça geral, como se não se quisesse botar a ruínas o quartel que se deseja ocupar daqui a pouco.

Embora pareça ter sido de supetão, o reboliço que está instalado, revelando uma cúpula podre do partido emblemado pela ética, é um fato previsível, de certa forma parte de uma seqüência, do espetáculo que iniciou nas alianças e concessões feitas pelo ainda candidato Lula, em meados de 2001.

Com um pouco de lucidez enxerga-se que uma série de desafios está no ar. Qual o poder de reação que a figura ainda emblemática do presidente pode esboçar? Heloisa Helena tinha razão? Para trazer mudança de fato é preciso romper estruturalmente? Há alguma maneira suave de transição que não implique em contaminação pelos venenos mais sujos da estrutura de poder que temos? Que opções nos restam em curto prazo? Se a eleição fosse hoje à tarde, em quem se votaria para presidente? Quem estaria menos desabonado que o já desabonado governo atual? Com o modelo político atual tem como governar sem sujar as mãos? Haverá esse dia em que estaremos tão de pé que poderemos “meter a mão na mesa” e enfrentar o modelo político-econômico que nos é imposto? Será que Chaves e Kirchner escolheram melhor? Estas são as perguntas macro a serem respondias. Esse é o ganho que a tal crise pode nos trazer no atacado.

No varejo, fica a panfletagem da impressa que pode, frenética em destruir o sentimento de aspirações que o brasileiro comum começa a ter. Aspiração de ser um país mais limpo, de ter uma opção ética e nacionalista de poder. Afinal, povo que aspira, daqui a pouco vai querer sonhar e realizar.

Aí complica, certo?

Sorria, você esteve no TRE da Bahia

Contexto:

Março de 2005. Voltando a Paraíba para fazer doutorado, tinha um sentimento de gratidão pelos anos que passei na Bahia, por tudo que acumulei de bom no período que estive em Salvador. O TRE-Ba é um pedaço importante desse período, e muito curioso, porque as coisas aconteceram lá na mesma sequência de cada fase que vivi como "estrangeiro", a quase mil km da Paraíba. Na saída, fiz esse registro.


Gente, o período que estive no TRE-BA coincide mais que cronologicamente com os anos que morei na Bahia, porque dentro do Tribunal passei por todas as etapas que fizeram da minha estadia na “melhor cidade da América do Sul” mais um daqueles períodos felizes da minha vida, sempre tão abonada. O que aconteceu comigo nesse prédio da paralela é um resumo das experiências vividas nesses seis anos longe de mãe (como Painho gosta que eu fale).

Foi difícil chegar, difícil entender como as coisas funcionam e, principalmente, entender como as pessoas funcionam. Como todo início, houve centenas de arestas a se aparar entre o normal que vinha comigo e o normal que encontrei em vocês. Por ter sido mais árdua, essa primeira etapa (como em quase tudo na vida, aliás) foi das mais instrutivas. Passado o primeiro momento, iniciou-se as duas etapas seguintes, que passaram como voando e, na minha avaliação, completariam a tríade vim, vi e venci.

Aqui eu vi, aprendi muito sobre trabalho e pessoas, como há tempo não crescia tanto profissionalmente e provavelmente jamais tinha enriquecido como pessoa. Desenvolvi muitas novas habilidades e competências. Descobri os Tribunais que existem dentro de um TRE e levarei uma bagagem invejável comigo. Aqui, além de Paraíba, eu fui programador, chefe de setor, o menino do SVC, atacante do time da SI, grevista, sindicalista empolgado, animador de auditório em treinamentos chatíssimos de urna eletrônica, coordenador, e, melhor que tudo, acredito ter conseguido ser sempre Guga, na essência daquele que chegou há seis anos, sem se achar melhor ou pior, “não desejando o mal a quase ninguém”. É exatamente esse período que merece o registro que agora faço. É essa etapa que me traz uma certa obrigação de devolver de alguma forma tudo de bom que aqui me foi dado.

No TRE-BA recebi espaço para trabalhar tranqüilamente, para sugerir, inventar, apresentar idéias e opiniões, às vezes ignoradas, mas sempre pude trazê-las. No TRE-BA, mesmo no meio de sua era chamada “negra”, encontrei espaço para descordar, apoio para resistir, companhia para se posicionar e a chance de descordar, até duramente várias vezes, mas sempre mantendo a ternura, ao ponto de não conseguir eleger um desafeto nesse tempo todo. Trabalhando aqui eu fiz amigos, conquistei pessoas e incrementei meu mundo com novas fatias maravilhosas, desde a impavidez de Djooorge até as loucuras de Hadad e Luciana (cada uma a seu modo). Nesses processos recebi das pessoas grande parte da alegria que senti na Bahia. Senti alegria de conviver, senti a felicidade de ter gente para me ensinar, apoiar, ter paciência com perguntas e dificuldades primária para alguém que, soldado raso, vinha da infantaria. Adorei encontrar nos corredores formais de um Tribunal gente que não se encaixa, gente que não foi feita em séria, os chamados malucos, bem representados por Joel (esse réu confesso), Zé da Palha e Sidjinhi. Senti aconchego ao ser bem recebido em um meio de certa maneira já formado, em turmas de amigos já sedimentadas, em grupos de trabalhos já completos e entrosados. Dos que tiveram as relações profissionais extrapoladas em laços de amizade, levarei um vínculo praticamente inquebrável com a Bahia, talvez tão forte quanto a naturalidade soteropolitana do meu filho.

A exemplo da chegada, quando desembarcava vindo da Paraíba, só que agora em sentido contrário, levo da Bahia e do seu micro mundo TRE-BA a mais profunda gratidão, a enorme alegria e orgulho de ter sido e continuar sendo parte desse planetinha e, no fundo do coração, a certeza que a nossa relação não se acaba aqui. Seja para visitar com uma enorme freqüência ou para me instalar novamente, definitivamente voltarei.

É com a sensação de “venci” que parto. Pelas emoções que experimentei, pelas alegrias que encontrei e pelo aprendizado que acumulei, levo a sensação que prosperei nessa terra. E é com este sentimento positivo que deixo um beijo no coração de todos, desse Paraíba que parte, mais uma vez, buscando novos horizontes.

Guga (Paraíba, segundo Bruno)

É Carnaval na Bahia

Contexto:

Fevereiro de 2005, com Mi grávida de nove meses não brincamos o carnaval. Em casa, assistindo pela TV e convivendo com a galera que estava na farra, fui sedimentando observações que já fazia há muito tempo sobre a festa. Como a gente estará se afastando de Salvador em breve, resolvi registrar antes que as observações se dissipem.




Texto...

O trânsito está cheio de cones, protegendo caminhões que carregam e descarregam um entulho esquisito, muito mais parecido com lixo que com matéria prima da alegria. É praticamente impossível alguém vislumbrar o cenário que aquele monte de ferro e folhas de madeira, tiradas aos poucos do caminhão que atrapalha o trânsito, são capazes de compor. Quem conhece já sente o coração acelerado, projetando na cabeça o pandemônio que estará em ação daqui a alguns meses, ou dias. Os lugares estão ficando cada vez mais lotados, as filas agora são para tudo e ainda maiores. É gringo batendo em gringo, gente perdida, gente pedindo informação, gente querendo adivinhar e, quase sempre, errando. Os outdoors avisam os últimos ensaios, festas, feijoadas, lavagem, abadás, camarotes, camisas. Tudo está se esgotando, embora a festa não tenha nem começado.

É isso. A cidade está no clima. Quem vai já se entrosou e combinou, acertou dia, hora, local, bebida e outras cositas mais. Quem vem já reservou hotel, arrego, bloco e encontros, agora só falta vir. A atmosfera é de final de campeonato, quando os capitães ainda estão trocando flâmulas, adrenalina a mil, vibração total, embora ainda não esteja acontecendo nada.

Os primeiros acordes são locais e moderados. A turistada pesada ainda não chegou, a grande massa de pipoca tem trabalho amanhã, por isso não veio hoje e se veio, pegou leve. É o aquecimento, primeiros 15 min, quando os dois times “estão se estudando”. O desenho geral da festa já está montado, é possível nessa fase se fazer a melhor observação de como funciona todo o balé. O observador ainda pode se movimentar nos circuitos, ainda acha vaga para estacionar, bebida gelada na rua e, se for voltar cedo, pode até trazer as crianças. O carnaval já está no ar, mais ainda em tintas leve, como numa versão dietética, sem o peso que tem potencial para se apresentar. Os primeiros dias da festa, fora do calendário oficial e nacional, são uma bela alternativa para quem não tem a verve, o fogo e vigor necessários para o ápice da farra. Talvez até por isso sejam os dias chamados dos alternativos.

Sexta-feira. O tempo fechou. Agora tá todo mundo em campo. Turista, morador, folião de bloco, pipoca (não deu para tirá-los, ainda...), comerciantes e toda a estrutura institucional que, invisível, faz a festa funcionar. Agora é para valer, está “valendo três pontos”, é a hora do salve-se quem puder, onde geralmente quem pode não quer nem pensar em ser salvo.

Em todas as suas dimensões o carnaval de Salvador está na rua, com tudo que já se falou sobre ele e mais inúmeros novos capítulos sendo escritos em cada esquina. Para ser brincado, curtido, vivido e quando não restar opção de um verbo similar, ou sangue correndo nas veias, o carnaval está na rua para ser observado, assistido e traduzido em um registro escrito.

A primeira dimensão que salta aos olhos é a da organização. Profissionalíssima, de uma eficiência comparável a Marines matando, a estrutura que coordena o carnaval faz a silenciosa mágica de manter 2 milhões de pessoas, 300 atrações e três circuitos fluindo freneticamente, onde todos encontram o que precisam para cumprir seu papel. Por mais silenciosa que consiga ser, é ao mesmo tempo impossível não percebê-la. Na ressaca da primeira manhã, em todas as rodas de comentários e avaliações da noite anterior o assunto vem à tona. Tudo está funcionado perfeitamente! Trio não quebra, bloco não atrasa, atração não cancela, TV transmitiu tudo, a polícia, o banheiro, o moleque do isopor de cerveja, o guarda de trânsito, tudo, tudo que deveria estar, estava, fazendo o que devia e como devia. É a mais absoluta ordem em uma ambiente que tinha tudo para ser caótico. A festa é também privada e portanto um grande negócio, nos dando uma impressão desconfortável que o poder público é um empregado, que empresta o salão para os grandes grupos do carnaval façam sua festa e, claro, façam seus milhões.

Os trios não são mais o elemento fundamental da festa. Os blocos são. Eles definem as atrações, lotam as ruas, são filmados, entrevistados e perseguidos por todos. Dão o desenho do carnaval, definem os locais e horários onde cada ator do espetáculo vai estar, seja por interesse, seja por obrigação. O trio é um componente, muito importante, mas apenas um componente, contido na mega estrutura bloco.

Todas as cores do país estão presentes na festa, tudo de bom e de ruim de ser brasileiro. Meu amigo Joel didaticamente me esclareceria que é um micro mundo, onde os elementos que formam o macro estão lá devidamente representados. A diversidade de sons, danças, raças, tradições, maneiras de festejar e respeito às diferenças estão ombro a ombro na cidade. Ressalvaria uma grande interseção que se destaca nessa torre de babel carnavalesca, um ponto em comum no meio de um zoológico de expressões da festa, que é a enorme alegria e orgulho de ser baiano. Mesmo que para cada um deles “ser baiano” tenha significado e, principalmente, intensidade muito diferente, todos carregam esse sentimento (ou “energia” como um baiano diria) que parece ser meio causa, meio conseqüência da grandeza do carnaval que se faz aqui.

Nesses dias você pode ainda perceber que a Bahia é irreverente, tem uma musicalidade incrível, sabe e gosta como pouca gente de fazer uma farra. Que ela é africana, inegável e deliciosamente africana. Definitivamente, um lugar muito encantado para nascer um país. Esses elementos fazem uma festa de colorido variado e intenso, impossível de não se apaixonar.

Entretanto, por mais colorido que seja o carnaval, o olho de um sociólogo pode retratá-lo em um quadro preto e branco, que nos remete ao macro mundo que, segundo Joel, não pode ser negado. O caráter privado da festa leva a um ambiente onde brancos transitam folgados, animados pelas melhores atrações, com acesso às melhores bebidas e ambientes, enquanto os pretos se esforçam para não intervir neste deleite. São pretos servindo, segurando corda, empurrando preto, batendo, apanhando, prendendo e sendo preso, espremido entre a corda e o andaime do camarote, garimpando um centímetro de asfalto para o botar o pé, e tudo que de direito lhe resta, sempre que facilite ou pelo menos não atrapalhe o desfile dos blocos de brancos, sendo aplaudidos por camarotes lotados por brancos, onde quem é preto está em serviço. O sociólogo diria, agora cientificamente, que o Brasil nasceu aqui.

O baiano responderia ao sociólogo dizendo que faz uma festa tão extraordinária que participar dela, mesmo como figurante, é um privilégio que vale a pena ser vivido. Com os lugares certos e nas horas certas, tarefa mais difícil a cada ano, brincar e ser inesquecivelmente feliz no carnaval da Bahia ainda é possível.

Como um sociólogo baiano concluiria, eu tenho que concordar com os dois.

Terça-feira. O dia começa com cara de fim. Tá todo mundo se despedindo desde a primeira hora, convidando para o próximo ano, agradecendo e dizendo o quanto foi bom. Uns agradecem que o fim dos dias chegou milésimos antes que o fim das forças, uns acham que devia ter terminado desde ontem, outros tem lágrimas nos olhos, de saudade e vontade de mais um diazinho de festa.

Quem trabalhou está sempre satisfeito, com a missão cumprida ou o lucro obtido. Quem brincou leva no coração e no currículo uma belíssima história, para um dia juntar os filhos na sala, pegar um monte de pipoca, suspirar fundo e, orgulhoso, começar a narrativa: uma vez a gente foi passar o carnaval em Salvador...

Os 100 qualidade.

Contexto:

Outubro de 2004. Em uma discussão regada a caipirosca e guaiamum, veio à tona um assunto que pairava minha cabeça recentemente, que é a cara de loja R$1,99 que as livrarias estão tomando. Todas loucas para vender tudo e a todos, sem nenhuma preocupação com a qualidade do que está sendo vendido. Como acho livro um troço sagrado, quase divino, me incomodei muito e resolvi registrar.




Texto...

Que a televisão é um veículo de péssima qualidade de informação ninguém mais duvida. Saímos de uma época onde se catava dois ou três programas ridículos, do nível que surpreendia como aquilo poderia continuar indo para o ar, e chegamos ao ponto de se precisar de alguns minutos de concentração para lembrar de um programa que realmente valha a pena ver. A TV involuiu do patamar de veículo de comunicação, caminhando para meio de mera diversão e chegando à tônica do quanto pior melhor que temos hoje. Assim, para quem não é evangélico e tem o segundo grau completo, assistir TV hoje é um rito de ligar, correr canal para cima, para baixo, se entediar e desligar.

Apelemos então para o cinema. Pelo menos para o cinema que chega ao shopping que a gente freqüenta. Aí a situação não é menos triste.

Elimine os filmes de super orçamentos, os chamados “bkockbusters”, via de regra de Hollywood, que contam sempre a mesma história, apenas passadas em tempos ou lugares diferentes. São precedidos por outdoors, propagandas na tv, cartazes de “em breve” nos cinemas, críticas em todos os jornais e matérias no Vídeo Show. Elimine também as chamadas comédias românticas, que têm a obrigação de mandar todos os espectadores para casa com o ar de “oh, que lindo”. Por fim, elimine (pelo amor de deus, elimine!) aqueles filmes de heróis da porrada, tiroreio, policias veteranos do Vietnã & CIA LTDA. O que nos resta? Nos resta o cinema nacional, que renasce, sempre com dois filmes em cartaz: um com cara de cinema, como “Abril Despedaçado”, “Madame Satã”, “O Homem que Copiava”, “O Invasor”; outro com cara de programa da Rede Globo, sendo que com duas horas de duração, como “Os Normais”, “Sexo, Amor e Traição”, “A Taça do Mundo é Nossa”. O importante é que está lotando as salas e tirando da cabeça da gente que cinema implica em atores falando inglês + legenda. Nos resta por fim alguma coisa daquele mundo habitado por pessoas que fazem cinema como uma expressão artística. Não necessariamente filme para intelectual. São os filmes de Almodovar, o cinema latino americano, argentino vai muito bem aliás, alguns americanos que fogem do estilo “veja e esqueça” e os europeus, que às vezes dá para digerir.

Conclusão : o cinema também vai mal.

Corramos para o livro, a nossa casinha de tijolos nessa fuga desesperada do lobo da má qualidade. Com o livro é diferente. Com o livro tem que ser diferente.

Primeiramente, porque quem consome livro é gente que lê (dããã) e gente que lê já vem de fábrica gostando de boa televisão, boa música, bom cinema etc. É gente que exige qualidade da informação, que chama de bestial ou banal qualquer coisa que possa ser produzida por alguém sem um talento especial para aquilo. Uma música com estrofes de quatro versos, a primeira rimando com a terceira, a segunda com a quarta? Blargh! Não encanta. Letrinhas de amor apaixonado e saudoso? É Brega. Ensinando dança daquilo e daquilo outro? É brown (baixaria, em baianês), só desce no meio de uma farra. Programa de pegadinha, carnificina urbana, auditório de domingo à tarde? É tv trash. Cinema do tipo “veja e esqueça”? Se não tiver naaada para fazer, pode ser que veja. Se tiver, esqueça.

Depois porque livro carrega uma quantidade de informação muito grande e registra de forma mais solene o que carrega. Você pode falar muito sobre um assunto, mas se alguém pede para você escrever aquilo num livro, tudo muda. Se pensa 200 vezes antes de escrever e se lê outras 200 antes de dizer que está pronto. Salvo para aqueles que têm uma certa fluência no ramo e as palavras emanam mais tranqüilamente. Só que, para se chegar a essa fluência, precisa-se ter lido muito e carregar na cabeça uma bagagem razoável da língua e do assunto. De uma forma ou de outra, geralmente, o resultado de um processo de escrita surge com mais qualidade que aquilo que simplesmente se falou.

Outra característica do livro é exigir raciocínio do consumidor. A mesma história lida por duas pessoas compõe dois mundo diferentes. A fisionomia das personagens, a visualização dos ambientes, as intenções escondidas atrás de cada frase, as emoções trazidas por um parágrafo, a compreensão tiradas das entrelinhas de um capítulo, cada coizinha dessa ganha uma individualidade dada pelo leitor. Se ele não cumprir a sua parte, a história trazida nas letras está morta, não existe. Desta forma o livro instiga o leitor na sua capacidade de raciocínio, percepção e sensibilidade, ao mesmo tempo que desenvolve esse poder a cada leitura que ele realiza. Assim, quem tem o hábito da leitura ou tem um discernimento superior que aqueles que não tem, ou acabará o desenvolvendo, porque o livro é uma verdadeira catuaba para a mente.

Esses fatores sugerem a sensação que a nossa casinha de tijolos está livre dos namoros na TV, testes de fidelidade, Alien X Predador, o Arrocha e o Domingo Legaaaal. Só sugerem, infelizmente, porque a versão blockbuster para as livrarias já começa a se espalhar para todo lado.

Comecemos pelo fenômeno Harry Porter que, como toda coqueluche, concordo com Nelson Rodrigues, não serve. Não posso negar a alegria de ver a pirralhada trocar o Cartoon Network por uma maçaroca de 300 páginas, chegando ainda a demonstrar muito mais fascinação. Mesmo que tenham sido tangidas pela mídia, quase como gado, para cima daquele exemplar. Não vou nem insistir no fenômeno Paulo Coelho, que o pessoal considera boa literatura, se respaldando nos milhões de exemplares vendidos (assim como Amado Batista ou a Eguinha Pocotó). Quero só me focar em dois rótulos que são ícones dessa fase do livro de massa : os mais vendidos e os 100 maiores nãoseioque de qualquercoisa.

A primeira prateleira de cada livraria, ali de frente para a porta, como uma comissão de recepção, é uma pilha de livros espremidos, com uma plaqueta alardeante que os credencia como “Os Mais Vendidos”. São os livros que estão nos cartazes, que o cara deu entrevista em Jô Soares, ou que gira em torno de uma “ celebridade” (no sentido torpe que aquela novela associou à palavra). São comerciais, são feitos para quem não gosta de ler. Foram escritos pensando exclusivamente em vender e procuram se manter numa superficialidade que não assuste o leitor típico de Paulo Coelho. Biografia de jogador de futebol, piadas, o livro que deu origem ao filme que está fazendo sucesso no momento e todos os assuntos candidatos a alguma notícia no jornal da TV, que esteja na mente da maioria das pessoas alfabetizadas do país. Por isso são os mais vendidos.

A segunda é uma grife, algo como uma série Sexta-Feira 13 literária, com o mesmo formato, às vezes a mesma capa e, principalmente, o mesmo jeitão no título : Os 100 do . O que atrai neles também é um assunto da moda e principalmente a facilidade de estar dividido por 100. Por mais cansativo e pouco atraente que um texto possa ser, por mais que eu não tenha o hábito de ficar num lugar parado, fazendo a mesma coisa e ainda tendo que raciocinar, a centésima parte dele eu encaro. Depois eu abro, em um outro dia, leio outra centésima parte e vou digerindo, quase ruminando, na velocidade que minha paciência de telespectador permite para a leitura.

Esses fenômenos são rachaduras lamentáveis na alvenaria do livro, porque ao invés de levar o padrão de raciocínio quase bestial necessário para assistir ao Fantástico, ou ao último lançamento de Hollywood, para aquele um pouquinho mais elaborado necessário para se absorver e saborear um bom livro, está fazendo exatamente o contrário. Está baixando o livro para o patamar da trivialidade, à caça de uma massa deseducada, que agora nem nos livros terá um caminho para se educar.

Eu poderia ser mais otimista, como sempre costumo ser, e celebrar o fato de que pelo menos o povo começa a ler mais. Eu poderia fazer também uma análise sociológica manjadíssima sobre o nível cultural do povo etc. O fato é que além de que o nível é esse há 500 anos e essa explosão dos livros “comerciais” é bem recente e ela é que me incomoda no momento.

Assim que conseguir ler a pilha que a recente fase humus laborius deixou acumular, vou sair por aí, buscando outras livrarias, talvez as menores, certamente as que não estão nos shoppings, esperando agora encontrar uma que tenha uma prateleira enorme, bem destacada para Os 100 Livros Menos Vendidos do Mundo. Deve ser lá onde eu vou encontrar os melhores exemplares. Porque, afinal, com livro tem que ser diferente.

Rudan


Contexto:

Setembro de 2004. No meu aniversário deste ano, Mi, de uma forma muito poética, me presenteou um cavalo. Era uma caixinha de presente, que quando abri tinha um cavalinho de plástico dentro de um curralzinho. Aquilo significava que eu ganhara um cavalo, que o pai dela, meu sócio, iria procurar para ela comprar. Há cerca de um mês ele comprou e só agora eu pude fugir de Salvador para conhecê-lo. A sensação que trouxe da fazenda depois do final de semana é o que tentei registrar aqui.



Texto...

“Filme de índio”. Era assim que eu chamava os melhores faroestes da TV na minha infância. Meu pai, viciado no gênero, nunca perdia uma tal de sessão uestern, das tarde de sábado. Quando eu botava a cabeça na porta, era para perguntar : tem índio?! Quanto mais tivesse, melhor seria o filme. Tem mais, tinha que ter batalha também. Índio conversando, índio fazendo reunião com soldado, índio plantando, não tinha a menor graça. Se não aparecesse aquele círculo contínuo de índio, girando ao redor do forte (igualzinho ao Forte Apache que eu tinha), naquela tática idiota que parecia treino de tiro ao alvo para os soldados, o filme ficava logo chato. Bom mesmo é quando a batalha cruzava rios a toda velocidade, naquelas perseguições implacáveis. Os índios demonificados, com aquela cara de mau que arrepia a alma, querendo pegar os coitadinhos dos soldados, desesperados para chegar no forte. A água subia num belo espetáculo, quando as duas tropas cruzavam o rio a toda.

Gostava também de Zorro. Um diferente do mexicano, que tinha um índio amigo chamado Tonto. Um tinha um cavalo branco, outro um pampa, aqueles manchados de marrom e branco. Ainda pirralho eu já tinha impressão que aquelas seriam marcas da minha infância.

Agora depois cresci, deixei de assistir um monte de coisa boa, outro monte deixou de passar. O mais incrível é que só agora venho descobri que preciso ver todos aqueles filmes de novo. De repente, percebi que um dos componentes mais determinantes daqueles tipo de filme passava despercebido nos meus olhos. Uma figura cuja ausência faria daquelas aventuras eletrizantes num filme francês, chato, dos mais “cabeças”. Para mim, este elemento ficou como um figurante coadjuvante, aparecendo menos que o figurante, que já não tinha nada a ver com a cena principal.

Eram os cavalos!

Rapaz, impressionante como meus olhos só viam da sela para cima. Cego, cego, cego. Um bicho daquele tamanho nunca me chamou atenção. Pelo menos naquele tempo, porque agora é outra história. Agora eu tenho um. Um cavalo de verdade.

Pois é. É um negócio muito estranho ter um cavalo. Ninguém tem cavalo. Sinceramente, você já viu alguém na rua e imaginou montada num cavalo? Jamais. Dá pra pensar a gatinha no sofá alisando outra, sendo essa peludona. Ou o troglodita arrastando/sendo arrastado por um hot valley. Mas cavalo não.

- Você gosta de animal?

- Gosto

- Tem um?

- Tenho, claro.

- Qual?

Onze em cada dez perguntadores estariam esperando resposta do tipo “uma cachorrinho lindo”, ou “Ming, meu gato siamês”, ou no máximo, com certo constrangimento, o cara poderia responder “eu crio um ramster”. Mas um cavalo? Ah não, ninguém espera que outra pessoa tenha um cavalo. Eu pelo menos jamais esperaria. Se não esperaria que alguém o tivesse, imagine ter?

Um cavalo é um bicho diferente, que você gosta dele, que lhe serve muito e que lhe dá um lazer maravilhoso, como cavalgar de braço aberto, no meio do mato, debaixo de uma chuvinha fina. É uma delícia. Aí você monta demais e passa o dia seguinte descadeirado. Mas muito feliz, como aquela canseira que a gente sente quando joga futebol, toma um banhozinho e põe os pés para cima no sofá. Uhmmmm, que beleza.

O gostar do cavalo também é diferente. É como homem gosta de homem, no sentido “macho que gosta de macho”. Você acha ele uma figuraça, tem o maior cuidado com ele, quer que ele seja bem tratado, sempre pergunta por ele quando está longe e sente saudade da companhia. Mas tudo isso, sem viadagem. Sem muita melação. Quando reencontra você adora, mas externa isso dando uns tapas aqui, uns empurrõezinhos ali, e sai com ele para curtir a vida.

É um gostar sem meiguice. É um carinho sem dengo. É assim porque se trata de um bicho enorme, com uma força física literalmente animalesca e que precisa ser conduzido com certa firmeza, quase virilidade, para que fique claro quem determina o caminho do passeio. Daí para você manter aquele xodó que mantém com bichinhos, fica um negócio descabido. Quase ridículo.

Isso tudo que tá descrito acima serve para qualquer cavalo, mas tem um monte coisa que não diz respeito a “qualquer cavalo”. Coisas que só um cavalo tem. Coisas que só dizem respeito a Rudan, o meu cavalo.

A primeira delas é esse nome, “Rudan”. Pode parecer que é homenagem a um deus Gótico, que sempre se apresentava montado em um enorme cavalo branco. Ou o nome do cavalo em que o general Alemão desfilou na Champs-Élysées, quando Paris foi tomada na segunda guerra. É um nome imponente, que inspira um motivo histórico. E é mesmo um nome histórico. É um apelido que meu pai tinha na juventude, quando vendia sapato, dentre os quais o de uma famosa marca da época, chamada Rudan. Tudo bem que não é uma história imponente, de encher os peitos, mas é história. Como é do meu pai, enche meu peito sempre.

Depois a aparência. Rudan é um cavalo ordinário com pinta de extraordinário. Ordinário porque não é um puro-sangue, ou daqueles engomadinhos de exposição, que vem de fazenda de gente que vive disso, fazer cavalo bonito. Por outro lado é um cavalo que no meio dos ordinários tem um porte assim, de mais “retadão”, mais cavalo que os outros. Claaaaro que isso pode parecer (e ser) babação do dono, mas Rudan é assim. Eu juro.

Pelagem escura que brilha bonito. A cara dele parecer a barba de um cinqüentão, que tá aparecendo os primeiros cabelos brancos. Assim como o cinqüentão, aquele pelinho branco vai se espalhar. De acordo com o especialista no ramo, meu sócio, depois de castrado (aaaai!) ele vai passar por esse efeito maicoujeqsiano, ficando cada vez mais branquinho, até ficar da cor de leite. Não é vitiligo, é um processo normal mesmo. Segundo o mesmo especialista.

Rudan é elétrico. Como é novinho, ele tem energia demais. Tão novinho que vai trocar dentes, que ainda tem dente para nascer. Tudo isso, claro, segundo o especialista. O povo lá diz que ele ainda vai “refazer” muito, que o cavalinho daquele “refazendo” vai virar um cavalão danado. Embora não tenha noção do que seja um cavalo “refazer”, esse comentários me animaram muito. O bicho também não é de ficar muito quieto, tá sempre pronto para acelerar. Se você levantar o braço para ajeitar o boné, ele dá logo um pulo para frente e aperta o passo, achando que vai ser chicoteado. Não há necessidade de açoitá-lo, ou, reproduzindo a recomendação que recebi, “carece nem chicote”. Para abrir a porteira, o cavaleiro não muito fluente sofre um pouco, porque esta é uma manobra que demanda alguns segundos de paralisia do cavalo. Aí não é com Rudan. Encostou, levou mais de 5s para abrir, complicou. Ele já se virou, deu dois passos para um lado, um para frente, empurrou a porteira com a cara, enfim, lascou tudo. Aí tem que dar uma voltinha por ali, até chegar àquela posição novamente. A pilha dele é alcalina, então ficar parado não dá. É como minha sobrinha, que de tanta energia, pegava o cabelo da gente e apertava trincando os dentes, até se tremer de tanta força, só pra dar vazão na “ziguezira” que tinha dentro dela. Rudan é assim, Vivele de quatro patas.

Rudan também é bom de pisada. Você acelera o viageiro[1] e ele vai no vuc-vuc, parecendo o trem, na maior velocidade, sem mudar o passo. Passei várias vezes na porteira da frente para o povo ver a pisada. Aí era só elogio. Para fazer ele galopar precisa muita velocidade, porque antes disso ele segura no viageiro. Cabeça impinada, postura perfeita e tome perna. O melhor é que o cavaleiro mesmo praticamente estreante no ramo não pula nada da sela.

Agora eu vou deixar Rudam descansar. Deixar ele refazendo. Para quando eu conseguir escapar da gincana diária, correr para perto dele, dá-lhes uns tapinhas para matar a saudade e partir, feito menino, curtindo a companhia do amigão, brincando de Forte Apache.



[1] Passo em que o cavalo mantém seu corpo praticamente parado, movendo as patas em pares alternado, dando assim maior conforto ao cavaleiro por chacoalhar menos.