"O meu partido é um coração partido..."
Outubro de 2006. Recebi no tabalho uma grata visita. Foi inspiradora e me fez ir pra casa com aquele sentimento gostoso de esperança, que Bob Marley cantou e Gil traduziu: tudo, tudo vai dar pé.
Texto...
Acho que Cazuza já tinha AIDS quando escreveu esse verso. Ele é só o primeiro de uma seqüência de afirmações depressivas, negativas e desiludidas, que termina com um apelo meio desesperado: ideologia, eu quero uma pra viver! Cazuza era jovem demais para se desiludir tanto estando são.
Eu não. Não para os dois casos. Nem estou desiludido, nem tenho AIDS. Continuo empolgado, disposto e com aquela certeza dos deze6, 7, 8, 9 anos, que sou capaz mudar o mundo.
Nessa época de eleição, por exemplo, eu fico satisfeito em perceber que minha tese sobre a obrigatoriedade do voto procede. Por enquanto, ainda é importante o dever de votar, porque ele leva à população ter que prestar atenção na política partidária e, como efeito colateral, acabar se politizando socialmente, se importando com o todo além da sua calçada e compreendendo a importância que tem, por mais que durante os dois anos seguintes tudo e todos se esforcem para convencê-la de sua impotência.
É época em que, lá no interior da região mais atrasada do nosso país de terceiro mundo, as pessoas de repente se posicionam como as mais avançadas sociedades de hemisfério norte. Eu não visto essa cor porque é símbolo de tal corrente política da qual eu discordo. Eu não vou jogar cartas hoje, porque vou assistir ao debate entre os candidatos. Se na rua alguém está fazendo propaganda de bandeiras que são contra meus pensamentos políticos, eu não “deixo pra lá”, respondo, exponho minhas posições, debato, ensino e aprendo um pouco naquela troca de idéias. Se estou sabendo de alguma irregularidade, denuncio, vou ao Ministério Público, chamo a imprensa, espalho na Internet. Se alguém está envolvido em irregularidades, falcatruas, não perdôo, jogo duro com ele. Embora essa overdose de cidadania dure só uns meses, vai deixando “seqüelas”, que melhorarão a participação das pessoas mais simples no jogo da sociedade, de maneira que ludibriá-las se tornará cada vez uma tarefa mais complexa.
Foi nessa atmosfera eleitoral que reencontrei um colega de trabalho, que não via a uns sete anos. A lembrança que tinha de Seu Martins era de um homem de pouca comunicação, rude, jovem e como traço mais marcante uma força descomunal. Contava a todo mundo a proeza que ele realizou, levando sozinho uma geladeira por dois andares de escada, quando sentiu um ar de preguiça de seus colegas. Martins era simples assim, super na dele e um monstro pra trabalhar.
O que estava meio apagado na minha memória é que, nos intervalos de sua jornada,
Martins fazia uns exercícios da escola, sentando num beco, atrás do prédio, onde podia ter paz para raciocinar. Quando tinha dúvidas, se socorria com a turma do Fórum, que sempre dava força a ele, naquela jornada de supletivo de primeiro grau.
Estava meio esquecido também que Martins tinha uma auto-estima quilômetros acima da média. Como era gari, trabalhar lá no Fórum era para ele (e os demais vindos de outros órgãos) um grande negócio, já que o serviço não fazia nem cócegas perto das horas sob sol pelas ruas da cidade. Isso sugere que ele seguiria a mesma lógica sacana imposta aos chamados “requisitados”. Teria que engolir desaforos, porque a idéia atemorizadora de “ser devolvido” à sua repartição de origem significa um verdadeiro pesadelo. Poderia ser atemorizadora, mas não para ele. No primeiro desaforo desrespeitoso que recebeu, Martins “meteu a mão na mesa” e disse: me devolva que eu não estou aqui para isso não!
Semana passada, quando a cada dez minutos entrava um cabo eleitoral procurando a votação de tal candidato nas seções de tais cidades, entra na sala do NATT, trajando seu uniforme de gari, um sorridente Martins.
Falante, eloqüente, bem humorado e cheio de polissílabos no vocabulário, Seu Martins agora se chama Martins da Cachoeira, e com um par de CDs nas mãos pedia para que copiasse os dados da sua expressiva votação para deputado estadual, avisando e alfinetando logo, que “o gari já tem computador”.
Passado o quase susto, foi se construindo a agradabilíssima surpresa. Seu Martins me contou que é líder sindical, concluiu também o segundo grau, está na lista de chamada para o curso de Filosofia e não conseguiu os R$80,00 reais para se inscrever em direito, seu próximo projeto acadêmico. Ama o jornalismo, mas a sua atividade política já mostrou que seria preciso se vender antes de ter um microfone ou teclado à disposição pra trabalhar no ofício de sua paixão. Em vocabulário do próprio Martins, tem que puxar saco para ter espaço nessa área, e aí, deeeesde o tempo lá do Fórum, não é com ele.
Martins lê Maquiavel e muita sociologia. Recitou para nós a primeira página de O Príncipe e, com certo orgulho, provou ser bom aprendiz. Com apenas R$7,50, conseguiu propagar a sua mensagem de final de ano na mídia. Presenteou o governador com um livro e a dedicatória o fez proclamar o nome Martins em todos os veículos de comunicação, quando não teria como mandar aquelas mensagens natalinas, pagas, reservadas para políticos endinheirados, que tem o saco puxado por aqueles jornalistas que Martins não quis ser.
Ainda fomos agraciados com a narrativa de suas participações em debates, brilhantes, sempre trajado de gari, altivo e orgulhoso de ser concursado e não dever favor a nenhum padrinho. Debates com deputados (que delícia ver Martins falar “Vossa Excelência” com tanta trivialidade), empresários, políticos importantes, no âmbito de sua atividade sindical. Em cada uma das passagens, o gari (é assim que ele se denomina!) dava show, travava a verborragia cheia de pose e hipocrisia de quem não sabe o que é ser milagroso como ele. Também segundo o próprio, tem poderes mágicos, consegue fazer milagre e com freqüência mensal. Em uma rádio lhe perguntaram como os conhecimentos de gari poderiam lhe acudir numa administração de um estado. Martins trouxe a sua tese do milagre como resposta: se eu dou comida e moradia a três filhos, mulher, cachorro e um sagüim com o salário mínimo, imagine o que não faria com o que esse Estado arrecada. Assim como eu, tenho certeza que os restos mortais de Marx deram uma gostosa gargalhada naquela hora.
Cada um de seus mais de mil votos foi conquistado assim, no corpo-a-corpo como, bem humorado, descreveu o gari. “Posição não atesta capacidade intelectual!”. “É melhor votar num fodido que num bandido!”. “Diga onde você vai, que eu vou varrendo.... vou varrendo, vou varrendo...”
E varrendo foi Martins em sua trilha. Para lembrar a Cazuza, e a cada um de nós, que no país em que um torneiro mecânico, semi-analfabeto, retirante, feio e deficiente físico se tornou a mais expressiva personalidade política, ninguém pode se dar o direito de perder as esperanças.
De peito renovado, abro um sorriso e agradeço:
Salve Martins da Cachoeira, o gari.