Questões que me atormentam...

Wednesday, January 24, 2007

Fiat Lux

Contexto
15 de Fevereiro de 2005, no hospital Santo Amaro em Salvador, nasceu a luz que me inspirará por muitos e muitos anos.

Texto...

Então chegou o dia. Não foi de repente, como antigamente, mas foi emocionante como sempre será. Não é por ser uma cesária marcada que o nascimento do primeiro filho se torna um acontecimento pouco surpreendente ou previsível. É intenso, porque se trata de uma vida. É intenso como a vida tem que ser.

Na noite anterior eu me fazia a mesma pergunta da véspera do casamento e do dia que soube da gravidez: estou pronto para isso? A resposta também se repetia. Claro que não. Pai, gente. Pai é um negócio muito sério. Uma coisa é ser chamada de tio Guga. Uma coisa é o contato passageiro com o sobrinho, por mais chegado que lhe seja e mais responsável por ele que você se sinta. Agora, “venha aqui no colo do papai”. Vixe! É muito grave. Agora é com você mesmo e de uma vez por todas. Não. Sério mesmo, como Oli diz, eu não estou pronto para isso.

Chegou a hora e, escalado para acompanhar o parto, ouvi do médico a aliviante recomendação que não poderia dar uma de macho. No primeiro sinal de tonteira e fraqueza eu deveria sentar, antes de desmaiar. Ou seja, tem pai que desmaia! Eu fiquei então liberado de qualquer atitude vexatória, porque se desabasse num canto de parede estava apenas seguindo recomendações médicas. Acompanhado da quase-prima estudante de medicina, sabida e metida-a-sabida como todos são, eu era o fotógrafo com direito a narração do procedimento.

O sorriso de Mi na entrada foi retribuído por um muito amarelo e tenso, ainda bem que escondido pela máscara daquela indumentária Plantão Médico que eu usava. A cirurgia seguia e a conversa fluente entre médico e assistente me lembrava ainda mais o seriado. À medida que o sangue voltou a correr na cabeça, vi que o diálogo era sobre banalidades, programas de TV e, como o passageiro de avião naquele conto de Luis Fernando Veríssimo, tive vontade de gritar com os dois: presta atenção, gente! Depois relaxei, porque vi que a quase-prima quase-médica estava muito sossegada, sinalizando que a prosa era parte do procedimento. Agarrei-me na seguinte tese: se eu programo ouvindo Marcelo D2, o cara pode operar falando de novela, certo? Certo. Segue a cirurgia. O médico mandou eu dar a volta porque estava chegando a hora. O cenário do outro lado do biombo era absolutamente proibitivo para qualquer um com sensibilidade acima de médico legista. O visor da câmera digital me salvou, ocultando os detalhes sórdidos.

De repente a bunda! Isso é sorte, um bom presságio. Supersticioso por obrigação, algum baiano presente largou que nasceu com a bunda para lua. A operação que segue é dantesca. É um chacoalhado que termina com a cena que mudará a cena. Antônio na mão de doutor James é um lampejo, quase mágico, que transforma um procedimento técnico de medicina em poesia.

A constatação do filho saindo literalmente das vísceras da mãe é o primeiro ensinamento definitivo da paternidade. A relação filho-mãe é insuperável. É visceral, na semântica original que deve ter fundado a expressão. É um fato de força superior, que matemático nenhum conseguirá expressar. Naquele segundo constatei de forma muito clara que o meu papel nesse triângulo amoroso que viveremos daquele dia para sempre é de coadjuvante, é menor. Por maior que possa vir a ser, será menor.

O choro, inédito para mim, acordou-me da letargia que o nascimento me trouxe. Era ele, era a vida se expressando. Deveria ser permitido no centro cirúrgico pular, gritar, se ajoelhar deslizando, como se faz após um gol aos 47min. A alegria e emoção que senti naqueles minutos inauguraram uma nova coordenada, uma nova dimensão, no espaço de sentimentos da minha vida. Não tenho parâmetros para comparar, não tenho verbo para expressar. Quando lembro da minha emoção anterior mais forte, vejo um átomo, algo microscópico, junto ao que senti naquela sala. Mesmo faltando um Oliveira para dividir, é um momento que guardarei para vida. Esta lacuna (sem Oliveira) foi uma ressalva, uma alegria que não me queixei por sua falta, apenas guardei para que ainda haja sabores inéditos nos próximos.

Assim como nas ocasiões anteriores, saí do centro cirúrgico com a certeza que já foi tarde, que estava pronto para aquilo há muito tempo. Com Antônio como troféu, segui por alguns passos, flutuando e admirando aquele ser iluminado.

Horas depois, a gente descobre que ser pai não é só sentir, é também atuar, e muito. Pai bota para arrotar, pai troca frauda, pai entrega para mamar, pega de volta, dá complemento alimentar, massageia a mama, bota para dormir, lava, ferve, ferve, lava. Pai faz “de um tudo”! De tudo para ser presente, para cumprir o seu papel, mas logo é novamente lembrado que não é o protagonista.

A mãe, ainda convalescente da cirurgia, vem dar a segunda demonstração de onipotência na sua relação com o filho. Vem mostrar que só a maternidade é realmente natural. É tão forte que me deixa a impressão, muito bem definida por Mi, que todo pai é de criação. É a convivência que cria a relação de paternidade, porque a mera fecundação do óvulo é muito pouco diante dos aspectos biológicos experimentados pela mãe nessa relação. O próximo ato dessa ópera de amor supremo é a amamentação. Não menos forte que a origem visceral, o gesto de alimentar o filho, tirando do seu próprio corpo a sua nutrição, é mais uma conexão insuperável que a mãe desfruta.

A cena da amamentação suscita ainda a segunda constatação forte me trazida pela paternidade: não se pode ser mau filho após ser pai. A concepção, e em seguida a transformação daquele ser indefeso em uma pessoa, é uma tarefa cumprida com abnegação e devoção, que merece a gratidão de uma vida. Pode ser que uma criança não tenha discernimento para perceber isso. Pode ser que o adulto se sinta muito senhor de si para delegar a alguém os méritos de sua existência. Mas quem já foi pai não pode deixar de perceber que um dia, quando não sabia nem comer, alguém o pegou do zero, do menos um, e transformou em tudo isso que você é hoje. Antônio no peito de Mi é a metáfora perfeita para desenhar o dueto criador-criatura.

O aprendizado minuto a minuto, agora deliciosamente dividido com uma Oliveira, sorte que marquei no coração com mais intensidade que no registro de nascimento, é uma experiência recomendável para todo ser vivo. É preciso levar muito a sério aquela definição que a professora do primário repetia: o ser humano nasce, cresce, vive, reproduz e morre. Sem o capítulo “reproduz”, a vida humana é um livro incompleto, faltando uma das suas vertentes mais intensa. É como se não tivesse conseguido ser tão humano quanto era possível. Ficou faltando. É um capítulo inspirador, porque todos os ideais se renovam, todos os ímpetos se alimentam no rostinho amistoso daquele ser, que merece um mundo ainda melhor que o que você luta para deixar para ele. É renovador, porque amplifica e sedimenta o amor pela mãe, decretando uma relação definitiva entre a gente, o nosso verdadeiro casamento, como Negão me alertou.

Aos poucos os desafios vão sendo vencidos, à três mãos (deus abençoe as sogrinhas nervosas), as dificuldades vão diminuindo. A cada dia se torna mais possível segurá-lo com uma mão só (molhada!) durante o banho. De repente o umbigo já não é tão feio, o cocô já não fede tanto e o pescoço não escapa mais. É recebendo cerca de oitocentos conselhos por dia, dos mais variados assuntos e origens, que a gente vai dominando o trato com essa pessoinha, que chora, cala, come, dorme, caga e, eventualmente, está meio zem, assim paradão, olhando para o nada, ou invocado com a mão coberta pela luva, como quem diz “cadê meus dedos?!”. É um dia a dia de pai de primeira viagem, cometendo erros, perguntando besteira, desconfiando de tudo, querendo ligar para o médico pelo menos seis vezes por dia, estranhando o choro, o silêncio, a careta, a falta dela, pouco xixi, cocô demais, tudo que for banal, mas que possa significar um sintoma, não importa de que, mas isso é um sintoma.

Teremos outros filhos, certamente. Deixamos inclusive para eles algumas emoções inéditas como as contrações, bolsa estourada e a trupe dos Oliveira no corredor. Viveremos grandes alegrias na família que acaba de começar (de repente, dois mais um é igual a um!), claro que viveremos. Só que tanto os demais filhos quanto as alegrias vão ter que nos perdoar, porque nada será tão revolucionário, tão transformador como a chegada de Antônio. É um sonho que se vive acordado, que dura dias e dias, que significa ainda mais que o “anjo lindo” que Tunai cantou.

Na minha vida, por mais iluminada que ela pareça ter sido até então, fez-se a luz.

Tuesday, January 23, 2007

Redação - Título: Minhas férias

Contexto

Férias de final de ano 2006-2007. Eu e Mi entre a Paraíba e a Bahia. Aquela redação que a professora pede pra a gente fazer no primeiro dia da volta às aulas.

Texto

A perspectiva era maravilhosa. Antônio estava maiorzinho e a gente poderia, quem sabe, deixá-lo com a avó e ter uma semana só nossa.

Essa história da semana só nossa expandiu nossas possibilidades. Quase que infinitamente. Mesmo Mi condenada a tirar férias entre vinte de dezembro e vinte de janeiro, até que a morte a separe do LSD, a gente já tinha considerado inclusive a possibilidade de viajar pra fora! Ó praí?! A semana viraria dez dias e dava pra a gente curtir bastante. Mesmo com o frio no hemisfério norte, a gente estava disposto a encarar. Fiz contato com Amigos em Londres, Mi já tinha contatos eternos em outros lugares e o roteiro estava se construindo. Tínhamos tempo, dinheiro e tesão. Coisa rara de se reunir durante a vida.

O primeiro presságio foi bom. Muito bom, aliás! Mi engravidou, realizando um grande desejo nosso, que era encomendar um(a) parceiro(a) pra Toim. Foi ótimo, extremamente ótimo até. Muita emoção novamente, muita alegria e mil planos. Só que a viagem pra fora minchou, né? Gravidez recente, horas e horas de avião, corre pra cá, corre pra lá, ficar bebum na madrugada, badalando pelas ruas ... já não dava pra implementar.

Então, vamos viajar pra dentro, mesmo. Uns vinte dias na Bahia, ora entre os amigos e tudo de incrível do verão de Salvador, ora em Jequié City, com tudo que a gente adora lá. Toim com os avós e a babá, e a gente na vida boa.

Aí tinha o casamento de Carlinha. Mais uma ótima notícia, grande acontecimento, que deixou a gente muito feliz. Super feliz, mas em Campina Grande, até o final do ano. A babá estava de folga esses dias, mas tudo bem, bom pra matar a saudade do pequeno.

Só que depois do dia trinta, a folga começou a parecer deserção. Começou aquele processo atleta olímpico de Cuba. O cara sai para competir, beija a bandeira, dá continência ao comandante e tudo. Quando ver que está longe, que ninguém pode lhe segurar, o cidadão desaparece e diz: volto mais nunca! E nós ficamos com a cara no chão, em uma novela cujo desfecho seria nós dois, Toim e nada de babá.

Seguimos para Bahia. Mi de avião, e eu de carro, por uma questão de merecimento, imagino. BR 101 chovendo e entupida de caminhão. Foi massa a viajem. Num instante a gente chegou. Quatorze horas na direção de um carro 1.0 se passam voando, gente. Incrível!

Um calor em Salvador de fazer inveja a Patos, deixava a gente meio confinados num apartamento um pouquinho mais quente que o lado de fora. Conseguimos ter alguns minutos com amigos que vemos de ano em ano. Tive até tardes muito gostosas com amigos que são grande parte da saudade que tenho de lá. Aí chegou a hora de ir para Jequié.

A viagem de carro foi surpreendente, porque Antônio se comportou como um lorde, cantando um repertório que vai de “Ronda”, “Negue”, até cai-cai balão, por horas. Quando chegamos na “capital do sudoeste baiano”, descobrimos que Salvador até que não estava tão quente assim. Sob temperatura porta do inferno, era um misto de escapadas para fazendas e corridas atrás de Antônio, que nos cansavam tanto quanto divertia.

Com o passar dos dias, a gente ia pegando o ritmo e cuidar de Antônio já era muito mais prazer que cansaço, porque ele estava naquela fase que deixa de ser bebê e passa a ser criança, falando tudo, entendendo as coisas e saindo com umas frases que fazia a gente se perguntar “de onde esse menino tirou isso?!”. Mas há uma verdade irritantemente verdadeira que diz que nada está ruim o bastante que não possa ser piorado. Um telefonema caiu de pára-quedas informando a morte também trágica de um primo de Mi.

O mundo desabou de novo sobre nossas cabeças e entre viajar às pressas para Salvador, pegar parentes em aeroporto, velório e dormir em uma casa diferente a cada dia, a sexta-feira da última semana de férias finalmente chegou.

A gente estava tão relax que chegou a ligar para a companhia tentando antecipar o vôo de volta. Que tal? Como não poderia ser diferente, não deu certo, e a gente voltou no domingo mesmo, pra uma casa sem empregada, sem nada pra comer e sem babá. Somente.

Segundo Polyanna, a gente teve um reveillon inesquecível às margens do Atlântico, voltou inteirinhos para casa, conseguiu ver praticamente todo mundo que a gente gosta na Bahia e na Paraíba, esteve nas fazendas, montou a cavalo, curtiu Antônio como não fazia a mais de ano, tem grana pra comer na rua e contratar diarista enquanto as coisas se acomodam e etc.

Segundo eu e Mi, na moral, essas férias foram phoda!


Apito Final

Contexto

Novembro de 2006. Recebi um telefonema de Aroldo, um amigo do racha, informando que Dr Emanuel, proprietário da granja onde fica o campo do nosso futebol, meio que subitamente havia falecido. Estava viajando sozinho de João Pessoa para Campina Grande, e alguns pensamentos sobre a figura do Doutor pairaram na minha cabeça. Como de costume, resolvi registrar.

Apito Final

Eu não tive contato pessoal com aquele velhinho. A única referência que tinha dele, fora o reencontro recente, era uma vaga lembrança dos tempos de infância, quando acompanhava o pai de Aaron em racha lá em Jenipapo. O máximo de conversa que mantive com ele foi responder, meio monossilábico, encabulado, as perguntas que ele fazia quando aparecia de repente, no meio de um jogo.

Fora isso, a impressão que guardo dele foi montada quase que totalmente por observação, e eventualmente em sentimentos que suas aparições despertavam.

Um velhinho, de quase oitenta anos, entrar em um campo de futebol devidamente trajado, equipado como manda a regra e disposto como gostam as torcidas, é uma imagem por si só inspiradora. Daí se esse campo está habitado em sua maioria por uma meninada que paira entre os vinte pouco e os trinta e tantos, é mais gostoso de ver ainda.

Nessa segunda vez que meu mundo encontrou com Seu Manoel ele me impressionou simplesmente por está ali, de vez em quando, pronto como qualquer um da gente, pra entrar em campo e curtir o futebol.

Com o poder silencioso que os idosos parece ter, Seu Emanuel deu algumas lições pra a gente naqueles dias. Inspirou algumas atitudes que fazem uma brincadeira descomprometida de futebol se tornar um troço educativo, construtivo.

Era muito interessante como ele se colocava na trave e não aceitava a posição de café-com-leite. Nunca me senti sem goleiro quando o tinha no meu time. Cada vez que a bola era chutada, que passava pela defesa, eu tinha a esperança que um torcedor tem quando o time sofre contra-ataque fulminante: que o goleiro faça aquela intervenção pouco provável, que salvará o gol. Eu sabia que era perigo, por sua pouca mobilidade, mas tinha certeza que ainda não era gol. Essa era a primeira lição. Mesmo aos oitenta, em um ambiente que a condição física é determinante, a gente ainda podia contar com um velhinho e, portanto, tinha que dá-lo o devido valor.

Outro efeito educativo que sua participação tinha era arrancar de uma juventude totalmente descompromissada, regada a histórias de cachaças, vaquejadas, mulheres, etc., com aquela postura “to nem aí pra porra nenhuma” que moleque de classe média costuma ter, uma atitude respeitadora, equilibrada, decente e digna de gente muito sábia, com valores invejáveis de humanidade. Era bonito ver Daniel ou Pedro entrar rasgando a defesa e de cara a cara com Dr Emanuel desferir o chute final, como muito respeito. Respeito duplo. Primeiro por não usar a força que usaria para qualquer goleiro, preservando fisicamente o doutor. Depois por desferir um chute indefensável, totalmente fora das possibilidades de qualquer goleiro, pra deixar claro que tinha na sua frente um goleiro de verdade, que precisava ser evitado se quisesse fazer o gol. Daquela maneira estava dito que o Dr. tinha que ser preservado, mas definitivamente não era café-com-leite.

Se quando beirar os oitenta, minha hora de repente chegar, sinceramente estarei feliz se deixar pra trás a mesma impressão o doutor me deixou. Uma pessoa que esteve viva, contando, influindo, participando, brincando “na vera”, até o último suspiro.

Como o futebol no final da tarde de domingo, o jogo da vida acabou para Dr Emanuel. Mas pelo pouco contato que tive com ele, creio que a resenha, os comentários e as repercussões de sua atuação perdurarão por muito mais tempo que os 90 min da partida.