Fiat Lux
15 de Fevereiro de 2005, no hospital Santo Amaro em Salvador, nasceu a luz que me inspirará por muitos e muitos anos.
Texto...
Então chegou o dia. Não foi de repente, como antigamente, mas foi emocionante como sempre será. Não é por ser uma cesária marcada que o nascimento do primeiro filho se torna um acontecimento pouco surpreendente ou previsível. É intenso, porque se trata de uma vida. É intenso como a vida tem que ser.
Na noite anterior eu me fazia a mesma pergunta da véspera do casamento e do dia que soube da gravidez: estou pronto para isso? A resposta também se repetia. Claro que não. Pai, gente. Pai é um negócio muito sério. Uma coisa é ser chamada de tio Guga. Uma coisa é o contato passageiro com o sobrinho, por mais chegado que lhe seja e mais responsável por ele que você se sinta. Agora, “venha aqui no colo do papai”. Vixe! É muito grave. Agora é com você mesmo e de uma vez por todas. Não. Sério mesmo, como Oli diz, eu não estou pronto para isso.
Chegou a hora e, escalado para acompanhar o parto, ouvi do médico a aliviante recomendação que não poderia dar uma de macho. No primeiro sinal de tonteira e fraqueza eu deveria sentar, antes de desmaiar. Ou seja, tem pai que desmaia! Eu fiquei então liberado de qualquer atitude vexatória, porque se desabasse num canto de parede estava apenas seguindo recomendações médicas. Acompanhado da quase-prima estudante de medicina, sabida e metida-a-sabida como todos são, eu era o fotógrafo com direito a narração do procedimento.
O sorriso de Mi na entrada foi retribuído por um muito amarelo e tenso, ainda bem que escondido pela máscara daquela indumentária Plantão Médico que eu usava. A cirurgia seguia e a conversa fluente entre médico e assistente me lembrava ainda mais o seriado. À medida que o sangue voltou a correr na cabeça, vi que o diálogo era sobre banalidades, programas de TV e, como o passageiro de avião naquele conto de Luis Fernando Veríssimo, tive vontade de gritar com os dois: presta atenção, gente! Depois relaxei, porque vi que a quase-prima quase-médica estava muito sossegada, sinalizando que a prosa era parte do procedimento. Agarrei-me na seguinte tese: se eu programo ouvindo Marcelo D2, o cara pode operar falando de novela, certo? Certo. Segue a cirurgia. O médico mandou eu dar a volta porque estava chegando a hora. O cenário do outro lado do biombo era absolutamente proibitivo para qualquer um com sensibilidade acima de médico legista. O visor da câmera digital me salvou, ocultando os detalhes sórdidos.
De repente a bunda! Isso é sorte, um bom presságio. Supersticioso por obrigação, algum baiano presente largou que nasceu com a bunda para lua. A operação que segue é dantesca. É um chacoalhado que termina com a cena que mudará a cena. Antônio na mão de doutor James é um lampejo, quase mágico, que transforma um procedimento técnico de medicina em poesia.
A constatação do filho saindo literalmente das vísceras da mãe é o primeiro ensinamento definitivo da paternidade. A relação filho-mãe é insuperável. É visceral, na semântica original que deve ter fundado a expressão. É um fato de força superior, que matemático nenhum conseguirá expressar. Naquele segundo constatei de forma muito clara que o meu papel nesse triângulo amoroso que viveremos daquele dia para sempre é de coadjuvante, é menor. Por maior que possa vir a ser, será menor.
O choro, inédito para mim, acordou-me da letargia que o nascimento me trouxe. Era ele, era a vida se expressando. Deveria ser permitido no centro cirúrgico pular, gritar, se ajoelhar deslizando, como se faz após um gol aos 47min. A alegria e emoção que senti naqueles minutos inauguraram uma nova coordenada, uma nova dimensão, no espaço de sentimentos da minha vida. Não tenho parâmetros para comparar, não tenho verbo para expressar. Quando lembro da minha emoção anterior mais forte, vejo um átomo, algo microscópico, junto ao que senti naquela sala. Mesmo faltando um Oliveira para dividir, é um momento que guardarei para vida. Esta lacuna (sem Oliveira) foi uma ressalva, uma alegria que não me queixei por sua falta, apenas guardei para que ainda haja sabores inéditos nos próximos.
Assim como nas ocasiões anteriores, saí do centro cirúrgico com a certeza que já foi tarde, que estava pronto para aquilo há muito tempo. Com Antônio como troféu, segui por alguns passos, flutuando e admirando aquele ser iluminado.
Horas depois, a gente descobre que ser pai não é só sentir, é também atuar, e muito. Pai bota para arrotar, pai troca frauda, pai entrega para mamar, pega de volta, dá complemento alimentar, massageia a mama, bota para dormir, lava, ferve, ferve, lava. Pai faz “de um tudo”! De tudo para ser presente, para cumprir o seu papel, mas logo é novamente lembrado que não é o protagonista.
A mãe, ainda convalescente da cirurgia, vem dar a segunda demonstração de onipotência na sua relação com o filho. Vem mostrar que só a maternidade é realmente natural. É tão forte que me deixa a impressão, muito bem definida por Mi, que todo pai é de criação. É a convivência que cria a relação de paternidade, porque a mera fecundação do óvulo é muito pouco diante dos aspectos biológicos experimentados pela mãe nessa relação. O próximo ato dessa ópera de amor supremo é a amamentação. Não menos forte que a origem visceral, o gesto de alimentar o filho, tirando do seu próprio corpo a sua nutrição, é mais uma conexão insuperável que a mãe desfruta.
A cena da amamentação suscita ainda a segunda constatação forte me trazida pela paternidade: não se pode ser mau filho após ser pai. A concepção, e em seguida a transformação daquele ser indefeso em uma pessoa, é uma tarefa cumprida com abnegação e devoção, que merece a gratidão de uma vida. Pode ser que uma criança não tenha discernimento para perceber isso. Pode ser que o adulto se sinta muito senhor de si para delegar a alguém os méritos de sua existência. Mas quem já foi pai não pode deixar de perceber que um dia, quando não sabia nem comer, alguém o pegou do zero, do menos um, e transformou em tudo isso que você é hoje. Antônio no peito de Mi é a metáfora perfeita para desenhar o dueto criador-criatura.
O aprendizado minuto a minuto, agora deliciosamente dividido com uma Oliveira, sorte que marquei no coração com mais intensidade que no registro de nascimento, é uma experiência recomendável para todo ser vivo. É preciso levar muito a sério aquela definição que a professora do primário repetia: o ser humano nasce, cresce, vive, reproduz e morre. Sem o capítulo “reproduz”, a vida humana é um livro incompleto, faltando uma das suas vertentes mais intensa. É como se não tivesse conseguido ser tão humano quanto era possível. Ficou faltando. É um capítulo inspirador, porque todos os ideais se renovam, todos os ímpetos se alimentam no rostinho amistoso daquele ser, que merece um mundo ainda melhor que o que você luta para deixar para ele. É renovador, porque amplifica e sedimenta o amor pela mãe, decretando uma relação definitiva entre a gente, o nosso verdadeiro casamento, como Negão me alertou.
Aos poucos os desafios vão sendo vencidos, à três mãos (deus abençoe as sogrinhas nervosas), as dificuldades vão diminuindo. A cada dia se torna mais possível segurá-lo com uma mão só (molhada!) durante o banho. De repente o umbigo já não é tão feio, o cocô já não fede tanto e o pescoço não escapa mais. É recebendo cerca de oitocentos conselhos por dia, dos mais variados assuntos e origens, que a gente vai dominando o trato com essa pessoinha, que chora, cala, come, dorme, caga e, eventualmente, está meio zem, assim paradão, olhando para o nada, ou invocado com a mão coberta pela luva, como quem diz “cadê meus dedos?!”. É um dia a dia de pai de primeira viagem, cometendo erros, perguntando besteira, desconfiando de tudo, querendo ligar para o médico pelo menos seis vezes por dia, estranhando o choro, o silêncio, a careta, a falta dela, pouco xixi, cocô demais, tudo que for banal, mas que possa significar um sintoma, não importa de que, mas isso é um sintoma.
Teremos outros filhos, certamente. Deixamos inclusive para eles algumas emoções inéditas como as contrações, bolsa estourada e a trupe dos Oliveira no corredor. Viveremos grandes alegrias na família que acaba de começar (de repente, dois mais um é igual a um!), claro que viveremos. Só que tanto os demais filhos quanto as alegrias vão ter que nos perdoar, porque nada será tão revolucionário, tão transformador como a chegada de Antônio. É um sonho que se vive acordado, que dura dias e dias, que significa ainda mais que o “anjo lindo” que Tunai cantou.
Na minha vida, por mais iluminada que ela pareça ter sido até então, fez-se a luz.